Há muito debate sobre a histeria na psicanálise. Portanto, não caberia aqui uma apresentação detalhada do conceito. No entanto, é possível um tratamento do termo que caminhe por pontos bem sedimentados. Há algo que podemos considerar um consenso, pelo menos na literatura Freudiana, sobre a histeria.
Uma característica marcante da histeria é a insatisfação, nenhum estudioso de psicanálise poderia negar. Avancemos um pouco mais a partir deste solo bem sedimentado. Não se trata apenas da insatisfação em si, mas de um desejo pela insatisfação, diríamos um culto pela insatisfação, o gozo na insatisfação. Diz Freud:
“Se aquilo que desejam com mais intensidade em suas fantasias se lhes apresenta na realidade, eles não obstante o evitam; e abandonam-se a suas fantasias tão logo não precisem temer vê-las realizadas”. (FREUD, p.107)
Dito em outras palavras, temos aí o prazer no temor do sujeito em ver sua fantasia realizada. Quando não há mais este temor, ou seja, quando a fantasia pode se tornar “realização”, o histérico abandona a fantasia. Voltemos agora à política.
A insatisfação com o governo Bolsonaro por parte da esquerda burguesa é inegável. Mais ainda, esta insatisfação é frequentemente associada à um sofrimento emocional intenso, cuja expressão corporal tem caráter explosivo, como por exemplo tom de voz alterado, xingamentos repetidos de “genocida”, “racista”, “homofóbico”, “misógino” etc…
De certo modo, poderíamos usar a metáfora do diabo ou de um monstro (palavra inclusive usada algumas vezes) para caracterizar Bolsonaro de acordo com as manifestações de muitos destes sujeitos. Há de se concluir que o grande desejo de toda esta gente, cristalizados nos gritos “Fora Bolsonaro”, seria derrubar o governo Bolsonaro.
Pois bem, estamos há cerca de 5 meses de uma eleição que, ao menos pelas pesquisas, coloca Lula ainda bem à frente de Bolsonaro. Não seria óbvio que toda esta energia contra Bolsonaro fosse canalizada para eleição de Lula? Vamos aprofundar um pouco mais a análise do caso.
É difícil imaginar que hoje, há 5 meses da eleição, alguém de fato acredite que o governo Bolsonaro possa ser derrubado sem ser pela via do processo eleitoral. Ou seja, todas as outras formas de derrubar Bolsonaro são apenas fantasias que não serão realizadas, isso sabe inclusive o próprio sujeito que sai por aí gritando “Fora Bolsonaro”. Em contrapartida, há uma possibilidade concreta de derrubar o governo Bolsonaro pela via da eleição sustentada por um movimento popular.
Ora, sustentar o grito “Fora Bolsonaro” sem impulsionar a candidatura Lula, não é uma forma objetiva de realizar o desejo de derrubar o governo Bolsonaro, mas é uma forma de cultuar uma insatisfação, característica fundamental da histeria.
Antes de finalizar este artigo, gostaria de incluir algumas questões de ordem lógica para diminuir os mal entendidos. Todo aquele que não quer Bolsonaro, nem Lula, se encaixa na descrição acima? Não, de forma alguma. Por exemplo, um eleitor de Dória ou da terceira via não se enquadra aí. Como também alguns que optaram pelo voto nulo ou abstenção, podem não se enquadrar.
O que caracteriza o discurso histérico descrito acima é a insistência repetitiva e frenética, personificada em Bolsonaro em forma de sofrimento, junto com a negação da alternativa mais simples à realização do desejo de derrubar Bolsonaro: a eleição de Lula.
Um outro ponto importante é o seguinte: alguém poderia justificar que os posicionamentos de Lula, notadamente sua aliança com Alckmin, dificultaram o apoio da esquerda a Lula. No entanto, a negação de Lula por este setor da esquerda que condena diariamente Bolsonaro, já vinha antes destas alianças. Deste modo, o argumento das alianças indevidas de Lula apenas alimenta o desejo pela insatisfação do histérico.
Por fim, mas não menos importante. Mesmo aqueles setores que apoiam Lula, não estão totalmente isentos da histeria do discurso de esquerda. Muito pelo contrário, o apoio a candidatura Lula por parte da esquerda, de modo geral, tem sido excessivamente tímido, especialmente se comparado com a energia dispendida diariamente nos ataques ao bolsonarismo. De modo geral, há muito mais um culto à insatisfação e ao sofrimento do que a canalização da energia para ações concretas que possam de fato mudar o estado das coisas.
FREUD, S Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972b. vol. VII, p. 1-119.
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