Henrique Áreas de Araujo
Em fevereiro deste ano completou-se 100 anos da Semana de Arte Moderna, evento que agrupou jovens artistas e intelectuais por três dias no Theatro Municipal, em São Paulo. O acontecimento que foi um marco no desenvolvimento artístico e intelectual brasileiro e que expressou as mudanças políticas, econômicas e sociais da época. O Modernismo brasileiro é o produto da revolução burguesa que estava se desenvolvendo no Brasil e que culminou com a derrubada da República Velha com a Revolução de 30.
Em suma, o movimento modernista surge como a expressão no terreno intelectual da revolução que se desenvolve no Brasil a partir do esgotamento da República Velha. Como é comum, o movimento era, inicialmente, um movimento heterogêneo, sem uma orientação ideológica ou formal definida. As preocupações centrais daquele grupo de artistas eram a de traduzir, da maneira que fosse, o espírito das transformações de sua época, sua personalidade.
Como todo movimento artístico, a heterogeneidade dos primeiro momentos dá lugar ao desenvolvimento de diferentes alas, antagonistas entre si. Essas alas expressam o próprio desenvolvimento da situação política da época. Esse é o caso do Modernismo brasileiro que, acompanhando o próprio movimento das classes na revolução, produziu uma ala à esquerda e uma ala à direita. A polarização no processo revolucionário se expressa no desenvolvimento da intelectualidade.
A ala esquerda, liderada por Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade entre outros, cujo marco é o Manifesto Pau-Brasil de 1924 e, posteriormente, o Manifesto Antropofágico de 1928, vai se radicalizar cada vez mais, aproximando-se do proletariado para se manter fiel à revolução, chegando alguns artistas até mesmo a ingressarem no movimento comunista. A ala direita, expressão da burguesia que procura frear o desenvolvimento da revolução, também acaba evoluindo, dando lugar ao fascismo brasileiro, o Integralismo.
É sobre essa ala direita que falaremos adiante, por ocasião do aniversário de publicação do Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo em 17 de maio de 1929.
Um retorno às velhas tradições
Os antecedentes do surgimento do Manifesto Verde-Amarelo são importantes para a compreensão da polarização política do próprio País naquele momento. O desenvolvimento da ala direita do movimento está ligado dialeticamente ao próprio desenvolvimento da ala esquerda.
A primeira manifestação organizada dessa ala direita é a Conferência “A Anta e o Curupira”, de Plínio Salgado, de 1926, onde é fundado, por ele, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo, o Movimento Verde-Amarelo. O movimento é uma reação ao que eles chamavam de “afrancesamento” do Manifesto Pau-Brasil, escrito por Oswald em 1924.
Como resposta ao recém-lançado movimento, Oswald de Andrade publica no Jornal do Comércio o artigo Antologia, em 24 de fevereiro de 1927, um texto satírico onde as palavras começam e terminam com anta. Diante da resposta de Oswald, o grupo forma a Escola da Anta.
No ano seguinte, Oswald de Andrade radicaliza ainda mais as ideias contidas no Manifesto Pau-Brasil e publica o Manifesto Antropofágico. Oswald e seu grupo vão evoluindo cada vez mais à esquerda, uma radicalização estética, na forma e no conteúdo.
Como resposta ao Movimento Antropofágico, a Escola da Anta publica seu Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo.
Para o Movimento Antropofágico a inovação radical na técnica e a verdadeira arte nacional deveria ser um produto da transformação daquilo que de mais revolucionário vinha das vanguardas europeias. Tanto na forma quanto no conteúdo, o nacionalismo do movimento antropofágico era, por mais contraditório que possa parecer, um nacionalismo internacionalista e universal. O Brasil deveria transformar em seu o que vinha de fora, esse é o sentido da antropofagia: o brasileiro deglute o estrangeiro para transforma-lo em algo novo, em um produto já diferente daquele inicial. É uma concepção dialética da cultura, portanto, progressista, que permite ao País andar para a frente.
Já o Manifesto Verde-Amarelista concebe um nacionalismo superficial. Um apego às velhas tradições, usando um índio Tupi idealizado como uma espécie de síntese do que era a nação brasileira. A escolha da anta era por tratar-se de um mamífero que os tupis davam importância porque abre o caminho na mata. A importância disso para o grupo verde-amarelista está justamente no fato de que os tupis chegaram à costa brasileira, acontecimento que seria essencial para a absorção dos portugueses que chegaram ao território. O primeiro parágrafo apresenta o problema:
“A descida dos tupis do planalto continental no rumo do Atlântico foi uma fatalidade histórica pré-cabralina, que preparou .o ambiente para as entradas no sertão pelos aventureiros brancos desbravadores do oceano.” (Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo)
Um pouco mais à frente, o manifesto apresenta o que ele considera ser a importância dos tupis para a formação da raça brasileira:
“Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade.” (Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo)
O índio idealizado, bondoso e pacífico, preparado para receber o sangue do português para criar a “gente nova”, revela uma proposta artística que busca um retorno à tradição realista-naturalista Eles exaltavam o que havia de pitoresco e ingênuo nas raízes nacionais. Trata-se de um nacionalismo superficial de defesa do “homem primitivo”, das raízes folclóricas brasileiras sem grandes consequências.
A preocupação dos verde-amarelistas era ausente de inovações formais e procurava inovar nos temas das obras. Essa característica marca bem o caráter superficial tanto da estética quanto do nacionalismo defendido por eles. É também um nacionalismo reacionário, principalmente se comparado às concepções do nacionalismo dos antropófagos.
Essa ala direita, portanto, ao negar a “arte estrangeira”, cai no convencionalismo estético, linear, descritivo e naturalista. Já a ala esquerda, quanto mais evoluía à esquerda, mais se destacava pelas inovadoras experimentações formais.
Ideologicamente, o Movimento Verde-Amarelo “apela para a ideologia irracionalista, mística e primitiva da ‘raça’, dos ancestrais. Não é uma cultura para o futuro e para o mundo, como propõe a vanguarda antropofagista, mas uma arte que busca recobrar as raízes e orientar o presente através de tradições místicas”. (Causa Operária nº 672, 08/01/2012)
O manifesto defende, portanto, uma não-filosofia, uma não-ciência, uma ideologia conservadora escondida por detrás desse nacionalismo superficial.
“O nacionalismo tupi não é intelectual. É sentimental. É de ação prática, sem desvios da corrente histórica. (…) A filosofia tupi tem de ser forçosamente a `não filosofia’. O movimento da Anta baseava-se nesse princípio. Tomava-se o índio como símbolo nacional, justamente porque ele significa a ausência de preconceito. (…) País sem preconceitos, podemos destruir as nossas bibliotecas, sem a menor consequência no metabolismo funcional dos órgãos vitais da Nação. Tudo isso, em razão do nacionalismo tupi, da não-filosofia, da ausência de sistematizações”.(Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo)
Os pontos do manifesto mostram claramente o conservadorismo do movimento. Com o tempo, abandona completamente o modernismo para cair num conservadorismo total, inclusive nas questões estéticas.
São essas concepções que abrem caminho para o posterior desenvolvimento do fascismo brasileiro, o Integralismo. “Não há como não ver aí o mesmo método ideologia de todos os fascismos europeus, que, diante do pavor do crescimento da revolução proletária busca a salvação na tradição, nas raízes imemoriais. O fascismo francês buscou a Idade Média e o Catolicismo, o italiano o império romano, o nazismo a ‘terra e o sangue’ e os mitos nórdicos que os acompanham”. (Causa Operária nº 672, 08/01/2012).
Plínio Salgado funda o Integralismo já como um movimento estritamente político, cujo marco é o seu Manifesto de outubro de 1932. O Integralismo tornar-se-á o primeiro partido nacional da burguesia brasileira, uma reação à organização política nacional da classe operária, o PCB, fundado em 1922.
Apenas a título de esclarecimento, os demais componentes do verde-amarelismo não evoluem ao Integralismo. Embora tenha sido um movimento de direita e um caminho necessário para a criação do fascismo brasileiro, esse movimento ainda não pode ser considerado fascista, assim como os intelectuais que fizeram parte dele. Dos nomes mais importantes do verde-amarelismo, apenas Plínio Salgado evolui para o fascismo.
A reforma moral: identitarismo e verde-amarelismo
Como fica claro, a preocupação da direita modernista é uma postura moral diante dos problemas da sociedade, como é típico das ideologias conservadoras. Nesse sentido, eles buscam uma reforma moral do mundo.
Estamos diante de uma clara coincidência, cerca de 100 anos depois, com a ideologia identitária que tem se infiltrado na esquerda burguesa e pequeno-burguesa no Brasil.
Os identitários, que procuram se apresentar no mundo como de esquerda e progressistas, defendem ideias que se aproximam da ala direita do modernismo, que depois evolui ao fascismo. É irônico, já que essa esquerda procura criticar o modernismo, em geral seus aspectos progressistas, por um suposto caráter “elitista”. Esse “elitismo” seria causado pela ausência de uma preocupação com as “ancestralidade”, que o modernismo seria um movimento fundamentalmente importado da europa, “coisa de branco”. Acusações vazias típicas do identitarismo.
O problema é que, como vimos acima, essas eram justamente as acusações da ala direita do modernismo, o verde-amarelismo, contra a ala esquerda. A “não ciência”, pois esta seria “europeia e branca”, a “não-filosifia”, o sentimento cotra a razão, o misticismo, a ancestralidade, a busca superficial pelas raízes e o folclore nacional. Tudo isso é parte da ideologia identitária, incluindo aí a destruição do passado e das conquistas intelectuais e políticas da nação: “destruir as nossas bibliotecas”, como diziam os verde-amarelistas.
E por fim, a concepção idealizada do índio como o verdadeiro modelo do que seria o Brasil, formulada de maneira muito semelhante pelos identitários de hoje e os verde-amarelistas da década de 20.
Com exceção da busca da nacionalidade brasileira, uma preocupação honesta dos intelectuais de esquerda e de direita do início do Século XX, a essência das ideias dos verde-amarelistas coincidem no fundamental com a ideologia identitária atual.
No caso do identitarismo, a conclusão que buscam não é a nacionalidade brasileira, mas a destruição dessa nação que conhecemos como Brasil. E nesse aspecto, estamos diante de uma ideologia ainda mais reacionária que o próprio verde-amarelismo.
É irônico e esclarecedor assistir a esse fenômeno. Eis a importância de conhecermos os movimentos históricos para combater os charlatões do presente.
E vale para os identitários de hoje, que gostam de usar a cultura tradicional dos negros e indígenas como pretexto para destruir o Brasil, a mesma crítica satírica feita por Oswald de Andrade contra a Escola da Anta: é “macumba pra turista”. Quando um identitário fala em candomblé ou umbanda, pode ter certeza que o objetivo é demagogia, oportunismo e carreirismo.