─ Eduardo Vasco, de Dubai
Saio do Brasil derrotado. No carro, até o aeroporto de Guarulhos, ouço a queda humilhante do São Paulo para o Palmeiras por 4 a 0 na final do Campeonato Paulista. Pela janela, vejo um barracão de madeira e dentro dele uma TV ligada no jogo, debaixo de uma ponte na Marginal Tietê. Fora do barracão, uma menina negra brincando com seu triciclo e um vira-lata perto dela brincando sozinho.
No dia anterior, uma palavra me despertou de uma soneca na linha 1 do metrô de São Paulo: Moscou.
─ Aqui é tudo de Moscou, disse, repentinamente, um vendedor ambulante, daqueles que nos últimos 7 anos infestam os vagões, vendo alguma oportunidade de driblar o desemprego estratosférico.
─ “Moscou”, os “guarda” levou, completou, para minha gargalhada após o espanto.
O bom-humor, mesmo em momentos de dificuldade, é uma das características mais notórias e idiossincráticas do povo brasileiro, que reflete nosso espírito de luta e de buscar a volta por cima mesmo nas mais difíceis situações.
Mas o rapaz não parou por aí e puxou novas risadas do seu público, procurando cativá-lo para conseguir alguma venda.
─ Minha sogra morreu e eu quero fazer um churrasco!
Já no voo para Dubai, de onde eu parto para Moscou, dou uma olhada nas notícias que me são oferecidas pelos serviços da BBC e da Reuters. Claro, o que me interessa são as novidades da Ucrânia. Coisas idiotas, como uma mensagem do palhaço ucraniano Vladimir Zelensky à premiação do Grammy, ou declarações do governo do Reino Unido contra a Rússia, não poderiam deixar de ser destaque. Mas duas notas me chamam atenção.
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, ontem foi reeleito para seu quarto mandato. Desde 2010 à frente do país, trata-se de um político de extrema-direita, reacionário, mas que vira-e-mexe se encontra em atritos com o imperialismo. George Soros, o maior lobo em pele de cordeiro dos especuladores internacionais, compatriota de Orbán, já teve uma universidade sua fechada na Hungria e é persona non grata em seu próprio país, por tramar contra o governo. A União Europeia o acusa de minar as instituições democráticas húngaras e a imprensa internacional o trata quase como um ditador. Orbán, destaca a notícia que leio, é o único líder da União Europeia que faz críticas públicas a Zelensky, e se recusa a enviar armas para a Ucrânia. Nos últimos anos, tem sido vista uma certa parceria entre Budapeste e Moscou, como parte do xadrez jogado por Vladimir Putin para frear as hostilidades do imperialismo europeu contra a Rússia, aproximando-se de setores da extrema-direita que se posicionam contra o sistema imperialista europeu, como a Frente Nacional francesa ou os adeptos de Matteo Salvini na Itália.
A outra notícia é a tentativa da oposição paquistanesa de derrubar o primeiro-ministro Imran Khan. A BBC informa que ele denunciou que existe uma conspiração liderada pelos EUA para removê-lo do poder devido às suas críticas à política norte-americana e outras medidas. Há “uma operação para uma mudança de regime promovida por um governo estrangeiro”, acusou o líder do Paquistão. Na crise entre Rússia, Ucrânia e o imperialismo, Khan já havia criticado, em um comício com seus apoiadores (que também denunciam um golpe estrangeiro), a maneira como a União Europeia trata o seu país, após essa exigir que Islamabad se posicionasse contra Moscou. Foi um discurso corajoso e inflamado, onde não poderia ter faltado a tradicional cutucada à Índia ─ Khan disse que a UE não fala dessa maneira com os indianos.
O mais interessante aqui é que parece se comprovar a tese defendida pelo PCO de que as movimentações de Putin na Ucrânia, enfrentando de forma decidida a OTAN, são um sintoma e, além disso, uma inspiração, para o aumento das contradições entre a burguesia nacional dos países atrasados e a burguesia imperialista dos países de capitalismo desenvolvido. Putin, Orbán e Khan não são políticos ideologicamente de esquerda, mas sim conservadores. No entanto, a opressão do imperialismo sobre os setores que representam tende a os colocar cada vez mais em contraposição ao poder mais reacionário que pode existir na face da Terra.
Após me atualizar do jeito que posso sobre a situação na Ucrânia, dou uma relaxada e começo a ler “Guerra dos Bálcãs”, livro-reportagem de John Reed que narra os primeiros momentos da I Guerra Mundial e as aventuras do autor de “Dez dias que abalaram o mundo” pela Europa Oriental em 1915.
“Decidimos, então, fazer uma incursão rápida pela Rússia e voltar quando as coisas ficassem interessantes nos Dardanelos. O embaixador da Rússia em Bucareste foi cortês, porém vago. Segundo ele, tínhamos de ir a Petrogrado e, por meio de nossos embaixadores, fazer uma requisição formal para irmos ao front. Mas a chegada de três correspondentes decepcionados, que tinham agido de acordo com esse conselho e ficado de molho em Petrogrado por três meses, nos desmotivou bastante. A retirada russa dos Cárpatos tinha começado, e havia combate perto de Czernowitz, ao norte, onde as fronteiras da Rússia, Áustria e Romênia se encontram. O cônsul dos Estados Unidos em Bucareste gentilmente nos deu uma lista de cidadãos norte-americanos com quem fazer contato à medida em que passássemos. Munidos com essa desculpa frágil, atravessamos o rio Pruth num barco pequeno, à noite, e desembarcamos no front russo.
Foi algo sem precedentes. As ordens eram muito severas para que nenhum correspondente fosse autorizado a permanecer nessas áreas, mas eram específicas para correspondentes vindos do norte. Vínhamos do sul, e assim, sem saber o que fazer conosco, eles nos mandaram para o norte. Saindo do front russo, viajamos por Bucovina, Galícia e Polônia, onde passamos duas semanas na prisão. Quando finalmente nos libertaram, fomos a Petrogrado e percebemos que saíramos da lama para cair no atoleiro. Parece que a essa altura as autoridades constituídas tinham decidido nos matar. A embaixada dos Estados Unidos lavou as mãos quanto a mim, mas Robinson, canadense de nascimento, foi até a embaixada britânica ─ e a embaixada britânica finalmente nos libertou e nos tirou da Rússia. Desnecessário dizer que não fomos ao Cáucaso.”
Neste momento estou sobrevoando Riad a 39 mil pés e quase me assombro como, em mais de cem anos, a burocracia para cobrir uma guerra da área de conflito continua exatamente a mesma.