Previous slide
Next slide

Nelson Rodrigues

Coices e relinchos triunfais

"Mas nenhum jogador europeu fez, jamais, nada que se parecesse com as jogadas de Pelé na estreia brasileira"

Reproduzimos, abaixo, crônica de Nelson Rodrigues, um dos maiores cronistas esportivos da história do País, intitulada Coices e relinchos triunfais:

Amigos, o meu personagem da semana é o cronista patrício que foi a Inglaterra. Pois bem:
— saiu daqui bípede e voltou quadrúpede. Desembarcou no Galeão soltando, em todas as
direções, os seus coices triunfais. Por aí se vê que o subdesenvolvido não pode viajar, e
repito: — não pode nem ultrapassar o Méier. A partir de Vigário Geral, baixa, em nós, uma
súbita e incontrolável burrice.

Não há, nas palavras acima, nenhuma piada. Faço uma casta e singela constatação. Ponham
um inglês na Lua. E na árida paisagem lunar, ele continuará mais inglês do que nunca. Sua
primeira providência será anexar a própria Lua ao Império Britânico. Mas o subdesenvolvido
faz um imperialismo às avessas. Vai ao estrangeiro e, em vez de conquistá-lo, ele se entrega e
se declara colônia.

É o que está acontecendo nas nossas barbas estarrecidas. O cronista que foi à Inglaterra
(salvo raríssimas exceções) quer apenas isto: — fazer do futebol brasileiro uma miserável
colônia do futebol inglês. Insisto no problema da viagem. O brasileiro que vai a Vigário Geral
volta com sotaque, mas pergunto aos paralelepípedos de Boca do Mato: — tínhamos alguma
coisa que aprender com o inglês?

Sim. Tínhamos. Por exemplo: — aprendemos como ganhar no apito. E, realmente, fomos
caçados com a conivência deslavada dos juízes, dos juízes que a Inglaterra manipulava. Aí
está o Canal 100.2 É o cinema, com uma ampliação miguelangesca, mostrando o nosso
massacre. Nada descreve e nada se compara ao cinismo com que se exterminou Pelé. Tal
cinismo foi, talvez, a maior lição que recebemos da Copa.

A melhor lição e não a única. Aprendemos também que um império se faz pulando o muro
e saqueando o vizinho. E só uma coisa não precisávamos aprender: — futebol. Vocês viram a
sorte do escrete russo no Brasil. É uma das melhores equipes do mundo. Só não foi finalista,
no lugar da Alemanha, porque jogou a semifinal com nove elementos. E, aqui, a Rússia perdeu
até em Maringá.

Mas há pior: — o mesmíssimo escrete russo tomou um banho de bola e de gols, sabem
onde? Em Moscou. Aqui, o escrete inglês levou uma de cinco. Vejam bem: — de cinco. E só
concedemos ao adversário um único e compassivo gol. Pois bem. Vai o cronista à Inglaterra e
lá tem todo o comportamento do subdesenvolvido, de várias encarnações. O futebol inglês, ou
alemão, ou russo é de uma clara, taxativa, ululante mediocridade.

Trata-se de um retrocesso evidentíssimo. A grossura, a truculência, a deslealdade ou, numa
palavra, o coice nunca foi moderno. É um futebol que se devia jogar de quatro, aos relinchos,
aos mugidos; e que também se devia assistir de quatro, com os mesmos relinchos e os mesmos
mugidos. Muito bem: — e que faz o cronista? Quer que o jogador brasileiro, o melhor do
mundo, também se transforme num centauro — um centauro que fosse a metade cavalo e a
outra metade também.

E não sei se vocês viram a página mais negra da nossa crônica. Vários colegas escalaram
o escrete da Copa. Não há um único e escasso brasileiro. O leitor há de perguntar: — “Nem
Pelé?” Nem Pelé. O cronista patrício está de tal forma fascinado com o futebol débil mental
que varreu do mapa o divino crioulo. Dirá alguém que Pelé só jogou contra a Bulgária e foi
assassinado no jogo Brasil x Portugal.

Mas nenhum jogador europeu fez, jamais, nada que se parecesse com as jogadas de Pelé na
estreia brasileira. E mesmo de maca, mesmo de rabecão, ele teria que entrar em qualquer
seleção da Copa. E Gilmar? E Paulo Henrique? E Altair etc. etc. Saímos da burrice da
comissão técnica e vamos cair na burrice de certa crônica. Uma conseguiu destruir o escrete, a
outra quer destruir o próprio futebol brasileiro.

Graças a Deus, há duas pessoas inteligentes em nosso futebol: — o craque e o torcedor. Os
dois não estão de quatro. O craque tem uma qualidade que não se deixou cretinizar pela
viagem. E a torcida sabe que a finalíssima foi a festa da mediocridade chapada.

Eu quero terminar dizendo: — quando, após a partida anteontem, o capitão inglês ergueu as
mãos ambas a Jules Rimet, o urubu de Edgard Allan Poe declarava aos jornalistas
credenciados: — “Nunca mais, nunca mais!” E, de fato, como as outras Copas vão ser
disputadas em terreno neutro, nunca mais a Inglaterra vai conseguir impor o seu futebol sem
imaginação, sem arte, sem originalidade. E o cronista que foi nos dois pés e voltou de quatro
que se cuide. O mesmo urubu de Edgard Poe diria que não se levantará nunca mais, nunca
mais, nunca mais.

Nelson Rodrigues – O Globo, 01/08/1966

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.