Na série documental sobre Nara Leão, Chico Buarque afirmou que deixará de cantar “Com açúcar, com afeto” – música que compôs para a cantora gravar em seu disco de 1967 – nos shows porque ela desagrada as “feministas”.
A notícia, que tem gerado muito debate nas redes sociais e na imprensa, nos esclarece bem o caráter do identitarismo como ideologia.
Grande parte dos regimes políticos no mundo de hoje, principalmente entre os países imperialistas, conservam uma fachada de democracia. Embora saibamos ser apenas uma fachada, para manter essa ilusão de democracia na maior parte do povo, a burguesia precisa preservar algumas garantias democráticas. Isso, no entanto, não significa que o regime político atual não seja ditatorial, apenas que houve algumas alterações na forma dessa ditadura.
Uma das formas como ela aparece é o identitarismo. Essa ideologia é impulsionada para criar um pretexto moral para uma censura generalizada contra os que são considerados inapropriados.
A cruzada moral nunca deixou de existir, às vezes com mais força às vezes com menos, para justificar medidas inquisitoriais. Muitos livros foram queimados, homens das ciências e das artes foram ameaçados ou mortos, os setores reacionários de cada época encontravam o pretexto moral ideal no seu esforço para fazer a sociedade andar para trás.
Os reacionários de hoje se dividem em dois. Os tradicionais direitistas de mentalidade fascista e os identitários. Esse último é um caso interessante para analisar. Essa ideologia burguesa se apresenta como progressista, justamente porque utiliza uma pseudo defesa das chamadas minorias para justificar uma política reacionária.
É uma perfídia. Com o identitarismo, a censura passa da força das armas, da ameaça física constante, da tortura, para o assédio moral. Os próprios artistas, a maioria deles de mentalidade progressista, são envolvidos nesse permanente assédio moral. Alguns chegam a ter mesmo uma crise de consciência e se autocensuram. Outros simplesmente cedem à pressão exercida pela histeria identitária.
Mas engana-se quem pensa que a constante ameaça física e a autocensura estão em lados opostos. A censura pela força só tem efeito porque exerce pressão sobre os artistas individualmente. Se um artista tem medo de falar determinada coisa ou se sente pressionado a não falar por conta de uma patente ameaça física, ele acaba se autocensurando para se preservar.
Os identitários não têm a força física para ameaçar ninguém, mas contam com o apoio da burguesia que nesse momento impulsiona essa ideologia. Isso cria uma determinada pressão moral sobre os artistas, que se veem diante de ataques histéricos, linchamentos morais e cancelamentos.
O identitarismo fez com Chico Buarque, um dos maiores compostores da música popular brasileira, o que a ditadura militar teve dificuldade de fazer. Para driblar a censura, Chico criou um pseudônimo famoso, Julinho da Adelaide. Ele poderia criar um novo pseudônimo agora para escapar da histeria identitária, um personagem mulher-trans-lésbica-negra-índia-obesa. Será que assim ele poderá falar o que quiser?