A burguesia anda muito preocupada com seu animalzinho de estimação, a “democracia”, ameaçado a todo instante. Durante meses, a imprensa da direita que se diz “civilizada”, em torno da qual gravita a esquerda ambientalista-identitário-cirandeira, só falou no golpe que o Bolsonaro daria no dia 7 de setembro, data do bicentenário da Independência do Brasil.
Diligentes na coleta de assinaturas e unidos em torno do mesmo projeto, civilizados e cirandeiros empunharam seus manifestos em defesa do STF e das urnas eletrônicas, como se estivessem participando de um remake soft dos anos de chumbo da ditadura militar. Só que não. O homem botou muita gente na rua, mas nem sinal do famigerado golpe. Os veículos militares saíram às ruas, mas para a festa da garotada.
Mesmo assim, o discurso de que a democracia está em risco continua a todo o vapor na imprensa e nas redes sociais. Vera Magalhães, a jornalista tucana da TV Cultura (ex-Folha), protagonista de um episódio ridículo no debate da emissora entre candidatos a governador, proclamou, em sua coluna no jornal O Globo: “Algo está muito errado com a democracia quando jornalista vira assunto ou, pior, personagem de uma campanha eleitoral”.
Vera dispensa apresentações, pois passa o dia no Twitter emitindo suas opiniões direitistas e teve papel muito expressivo no golpe de 2016, quando, exercendo sua nobre profissão, participou ativamente do processo de difamação do PT. A imprensa burguesa, como seria de esperar, descreveu o episódio no qual ela se viu envolvida como um “ataque de um bolsonarista à jornalista Vera Magalhães”.
O “ataque”
A palavra “ataque” sugere que ela tenha sofrido uma agressão física, mas os vídeos mostram algo um pouco diferente. A “violência política”, com a qual se preocupa o “ombudsman” da Folha de São Paulo em sua coluna semanal, foi a abordagem de um deputado bolsonarista, com a câmera de seu aparelho de telefone celular ligada, à jornalista, a quem fez uma pergunta em tom de provocação.
Como quem quisesse checar a informação de que ela havia recebido R$ 500 mil (ou “milhões”, claramente se confundindo) da TV Cultura para “atacar” o governo Bolsonaro, ele esperava provocar embaraço e registrar a reação dela, coisa que deve ter aprendido com a própria imprensa. Muito nervosa, ela corrigiu o valor (que seriam módicos R$ 200 mil, o salário mensal dela na TV Cultura como apresentadora do programa Roda Viva) e tentou ela própria filmar o sujeito. Um e outro queriam usar o episódio, cada qual a seu modo, mas, digamos, em “paridade de armas”.
O arruaceiro e o cavalheiro
A confusão chegou ao ápice quando o diretor de jornalismo da TV Cultura, o senhor Leão Serva, que, além de “mestre e doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP”, é “professor de ética e jornalismo opinativo na ESPM”, perdeu as estribeiras. Mesmo sendo destacado membro da estirpe tucana, Leão Serva xingou o bolsonarista de nome feio, daqueles que a mãe da gente ensina a não dizer, e arremessou longe o celular do… “arruaceiro”, tomando aqui de empréstimo a palavra escolhida pelo “ombudsman” da Folha ao se referir ao deputado.
A Folha de São Paulo procurou Leão Serva, seu ex-secretário de redação, o qual, por sua vez, só aceitou dar entrevista por escrito, coisa que não deve ensinar aos seus alunos. Em todo o caso, aproveitou o espaço concedido pelo jornal dos amigos para dizer que se arrependeu dos palavrões – oh, destempero imperdoável! – e justificar suas ações. Disse que jamais assistiu “passivamente à agressão a uma pessoa”. E, como não poderia deixar de ser, acrescentou que faria tudo de novo, pois “ali era uma mulher diante de um homem forte e muito agressivo”. O deputado era um arruaceiro, mas Serva foi um cavalheiro.
Segundo o professor de ética jornalística, é defensável intervir na notícia, uma boa questão para ele discutir com seus alunos, que, aliás, não devem tentar filmar a aula, pois já sabem o que pode acontecer. Além disso, declarou (por escrito): “Defender uma mulher de agressão é uma imposição moral; tirar a arma de um criminoso é uma ação defensável”. A agressão foi a pergunta provocativa, a arma era o telefone celular e o criminoso era o deputado metido a jornalista.
Monopólio da voz
O que incomodou a imprensa, imediatamente erguida em defesa da pobre vítima da misoginia, foi a inversão de papéis. Jornalistas são treinados para fazer perguntas provocativas e, muitas vezes, para deixar o entrevistado em posição constrangedora. Tudo por uma manchete. Ora, hoje, quando qualquer pessoa carrega no bolso uma câmera e pode publicar o que quiser em tempo real, o velho arranjo sofreu um grande solavanco. Onde já se viu jornalista virar alvo da notícia? Segundo a Vera, “há algo de errado com a democracia”.
Na opinião do tal “ombudsman” da Folha, o celular é uma arma que “espraia desinformação, discursos de ódio e apitos de cachorro, os recados que só fazem sentido para convertidos”. Mais que isso: “Celulares, quando mal usados, causam enorme estrago, quase sempre de ordem sistêmica”. O limite entre o mau uso e o bom uso do aparelho, ao que tudo indica, será, doravante, determinado pelo STF, o grande árbitro da nação. A propósito, o rei careca, ora no TSE, já proibiu que o eleitor leve o celular à cabine de votação.
Na análise da própria Vera Magalhães, “políticos populistas, com propensões autoritárias, agem para dilapidar a influência da imprensa nas sociedades e, com isso, gerar um ambiente em que o jornalismo profissional é substituído pela propaganda travestida de notícia e difundida por meio das redes sociais, de canais no YouTube e postagens em massa em aplicativos de mensagens”.
Faltou dizer que a imprensa à qual ela se refere é a imprensa burguesa, que se coloca a serviço dos interesses de uma classe, e que o jornalismo dito “profissional” é o jornalismo porta-voz dessa mesma classe. Desse modo, “dilapidar a [sua] influência” seria, então, um serviço prestado pelos “populistas com propensões autoritárias”. No raciocínio da jornalista, que usa o adjetivo “profissional” para defender o monopólio da sua imprensa sobre a voz, autoritários são os outros.
Quanto à “propaganda travestida de notícia”, a expressão igualmente se aplica à imprensa burguesa, da qual Vera é representante. Para perceber isso, nem precisamos ir muito longe: basta lembrar a maciça campanha difamatória a que foram submetidos Lula e o PT por obra do “consórcio de veículos da imprensa brasileira”, cujo objetivo era criar o ambiente para o golpe de 2016, cujas consequências os trabalhadores vêm amargando.
O problema mesmo para a burguesia está nos meios de difusão da informação, que, pelo menos em tese, estariam fora do seu controle. A multiplicidade de vozes que a internet e os celulares permitem é o que “põe em risco a democracia”, sendo esta o conjunto das instituições do estado, não os direitos da população. Para salvaguardar essa “democracia”, que consiste no arsenal do estado burguês, é preciso, sob qualquer pretexto, defender o cerceamento das liberdades individuais e a censura. Com uma democracia dessas, quem precisa de ditadura?
Diga-se, de passagem, que o deputado bolsonarista corre o risco de perder o mandato, pois teria incorrido em “quebra de decoro parlamentar” ao “agredir uma mulher” etc. etc. Sendo o sujeito um nome inexpressivo na bancada bolsonarista, certamente será atirado aos (outros) leões – em nome da “democracia”. Aliás, já foi rifado pelos próprios correligionários, a começar de Eduardo Bolsonaro, que lhe deu um pito público (com direito a pedido de desculpas à Vera) por não se submeter aos estrategistas da campanha em véspera de eleição. De quebra, a Justiça também saiu em defesa da senhora Magalhães, proibindo publicações de seus adversários políticos.
Pior que ver os direitistas se enfrentarem no picadeiro, porém, é a esquerda, à maneira de um boneco de ventríloquo, papaguear apoio a Vera Magalhães, como se a dita-cuja fosse vítima de alguma coisa. Se os jornalistas fazem política à luz do dia, é bom que aguentem as consequências em vez de usar a profissão, o identitarismo moralista ou o espantalho da “democracia em risco” para se furtarem a elas.