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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

literatura brasileira

As políticas do escritor Glauco Mattoso

a importância de Glauco Mattoso na literatura brasileira contemporânea

              Nesse Brasil em ritmo de política, como ler a política de Glauco Mattoso? Conheci a arte de Glauco Mattoso por volta de 1982, somos amigos desde 2005; a primeira informação que tive dele foram poemas do Jornal Dobrabil (1977-1981), eram poemas homoeróticos, tratava-se de arte-pornô, mas não apenas isso. Ao enfocar a mídia da circulação dessa arte-pornô, percebe-se que O Jornal Dobrabil está além de ser apenas meio para a divulgação de poemas pois, nesse caso e com bastante ênfase, o meio é a mensagem.

              Em 1984, foi editado o livro de poemas Antolorgia – arte pornô, organizado por Eduardo Kac e Cairo Assis Trindade. O que significa, em linhas gerais, arte pornô e, em termos mais específicos, o que significa fazer arte pornô no Brasil nos anos finais da ditadura militar? A arte pornô não procura reabilitar a pornografia, amenizando suas práxis via definições mais amenas, como arte erótica; pelo contrário, trata-se de colocar uma situação diante da pornografia, dizendo isso é arte.

              As ditaduras nunca são somente expressões políticas; os discursos políticos burgueses, enquanto manifestações das ideologias da classe dominante, estão sempre acompanhados das demais ideologias religiosas, científicas, estéticas… e, entre elas, as ideologias regentes da moralidade, altamente repressoras da sexualidade. Nessa cultura, a libertinagem, quando coloca em xeque os valores morais conservadores, pode ser revolucionária, justamente, por expor a instabilidade sexual das práticas opressoras.

              Retomando o meio para as mensagens de Glauco, cabe perguntar o que foi o Jornal Dobrabil e qual seu papel na arte postal brasileira. Antes de tudo, o que é arte postal? Em tempos de internet, a arte postal precisa ser redimensionada, quando boa parte de seus efeitos de sentido iniciais estão se diluindo no tempo, com o correio perdendo muito de sua função comunicativa devido aos avanços da telefonia celular e dos minicomputadores. Pois bem, no Brasil de 1977, Glauco datilografava uma folha de papel A4 à máquina, xerocopiava 100 exemplares e os enviava dobrados, semelhantemente a cartas comerciais, pelo correio, para pessoas selecionadas, entre artistas, jornalistas, políticos. Esse era o Jornal Dobrabil, cujo nome oscila entre “do Brasil” e “dobrável”.

              Naquela época, valer-se do correio para a criação artística era solução alternativa, entre outras, enquanto forma de propagação da arte, subvertendo, ao mesmo tempo, um meio de comunicação utilizado apenas de modo prático, valorizando-o ludicamente. Esse tipo de intervenção, manifestada por meio de cartões, selos, cartas, foi chamada arte postal. Por estar fora dos limites dos museus, as artes postais, semelhantemente às artes da rua e demais formas de intervenção urbana, discutem o estatuto da obra por, no mínimo, chamarem arte o que os menos atentos percebem apenas enquanto cartas, selos, muros sujos de tinta. O jornal do Glauco, contudo, não se limitou a questionar os meios de comunicação humano, pois os conteúdos do Jornal Dobrabil exploram poesia visual, heterônimos, intertextualidade e, bem antes do termo surgir, poesia homoerótica, colocando o trabalho do Glauco em meio a, pelo menos, mais quatro frentes de vanguarda.

              Embora nascida na segunda metade do século XX, a poesia visual ainda padece da incompreensão de muitos; enquanto vanguarda, ela separa os reacionários dos mais progressistas por permitir distinguir o Brasil provinciano, povoado de beletristas, daqueles que olham para o futuro da arte, investindo no experimentalismo e contrariando comentários fascistas sobre arte degenerada. Ao lado do Glauco Mattoso, o Glauco ortônimo, o Jornal Dobrabil é da autoria de Pedro o Podre, Garcia Loca, Sade Miranda, Albert Eisenstein, entre outros colaboradores seus heterônimos, todos eles inventados pelo Glauco. O papel literário e psicossocial da heteronímia raramente é compreendido em sua totalidade; levado adiante por Fernando Pessoa, o drama em gente não pode ser confundido com virtuosismo, já que a heteronímia não é veleidade literária, mas solução bastante eficaz para a crise do sujeito por buscar sua superação enquanto conceito histórico. Em seu jornal, Glauco também dialoga com outros escritores, seja divulgando poemas de Nicolas Behr, Leila Míccolis, Braulio Taváres, Luiz Roberto Guedes, Amador Ribeiro Neto, Augusto de Campos ou Eduardo Kac, seja por meio das citações de Haroldo de Campos, Manuel Bandeira, Mario Faustino.

              Arte postal, poesia visual, heteronímia, intertextualidade, poesia gay, temática sadomasoquista… enfim, em sua poética, Glauco Mattoso, além de tematizar a luta de classes explicitamente em vários contos, poemas e no romance “A planta da donzela” – uma releitura do romance “A pata da gazela”, de José de Alencar –, com militância ardilosa, indo de encontro às ideologias cristalizadas pela cultura de massas, vai de encontro diretamente às expressões reacionárias não porque destrói as formas literárias, mas porque as multiplica.

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