Nessa coluna, não vou entrar no detalhe sobre o que são Non-Fungible Tokens (NFTs). Numa breve explicação leiga: são identificadores únicos, gerados a partir de um conjunto de informações digitais (sequências de bytes) que não podem ser modificados. Na prática, apesar de difícil, é possível fraudar sua autenticidade, mas vamos ignorar esse problema. O ponto fundamental a ser compreendido é que NFTs são um mecanismo para a criação de algo único, irreplicável, que, ainda que seja inútil, cria uma escassez. Garantida sua unicidade, NFTs, ligados a tecnologia do blockchain, que sustenta as famosas criptomoedas, geram escassez num mundo habituado com a abundância: o mundo da computação.
A capacidade de armazenamento em nossos computadores pessoais evoluiu em poucas décadas de 1,44MB (capacidade dos extintos disquetes) para alguns TeraBytes em cartões SD mais caros. Trata-se de um milhão de vezes mais dados. Nossos computadores hoje são bilhões de vezes mais capazes do que os dos anos 1970 e, por isso, funcionalidades reservadas para máquinas especiais antigamente, como o reconhecimento automático da escrita, podem ser feitos sem grande esforço por celulares capazes. Reduzimos máquinas que ocupavam salas inteiras para aparelhos que conseguimos carregar no bolso.
Esse tipo de desenvolvimento exponencial é uma característica do capitalismo desde o seu surgimento e foi alvo de estudo de grandes pensadores, inclusive um tal de Karl Marx. Para Marx, esse crescimento explosivo das forças produtivas era a chave para a solução das contradições internas da sociedade em que vivemos. A alta produtividade, a abundância, libertaria a humanidade da exploração do homem pelo homem.
Eis que nos vemos, em 2022, confrontados com o uso dessa grande capacidade produtiva sendo utilizada para criar uma escassez artificial. Voltando ao tema, NFTs são únicos porque são códigos inseridos num sistema que faz com que seja computacionalmente inviável sua replicação a partir da mesma informação que foi usada para gerá-lo. Essa inviolabilidade é garantida por milhares (senão milhões) de computadores que trabalham incansavelmente para garantir a autenticidade de toda a blockchain que sustenta as criptomoedas e os NFTs.
Essa inviolabilidade é uma propriedade interessante, mas esse colunista, pessoalmente, não foi convencido de que blockchains são a forma mais racional de garanti-la. Não vamos entrar nesse mérito, o interessante é que NFTs tornaram possível a emissão de um certificado de propriedade de um item digital. Sim, imagens, músicas, filmes, jogos, livros e qualquer tipo de informação passível de ser digitalizada.
Isso não se relaciona à propriedade intelectual. Taylor Swift, popular cantora norte-americana, continua dona das músicas que compôs (ou que contratou alguém para compor, não sei). Agora, seus fãs, podem comprar um álbum digital com um NFT gerado especialmente para confirmar a compra. Ou seja, eles têm um certificado de intenção da autora em transferir-lhes aquelas músicas.
Sim, há pessoas que pagam preços exorbitantes pelo registro dessa transferência de posse de um artigo digital. Há várias delas, na realidade. Músicas que ainda poderão ser ouvidas num serviço de sua preferência, como o Youtube, ou até mesmo adquiridas “ilegalmente”. A internet e o mundo digital são abundantes e, no ponto em que estamos, transferimos dados entre nós numa velocidade estonteante. A duplicação de um álbum, que na época do vinil só era possível numa fábrica, hoje está a um ctrl+c, ctrl+v de distância.
O capitalismo criou a abundância material e agora, em momento de crise terminal, surge a ideia de escassez artificial. Eu posso até baixar o dito álbum da Taylor Swift (se eu gostasse), mas jamais serei detentor dos limitadíssimos NFTs distribuídos no lançamento. Relembro ao leitor: as músicas são exatamente as mesmas.
Há pessoas comprando imagens de ilustrações patéticas de macacos feios. Até o craque Neymar caiu nessa. Recentemente eu ouvi o termo “right-clicker mentality” no Twitter que, traduzido para o português seria “mentalidade de clicador direito”. Sim, eu acho que eu posso clicar com o botão direito numa imagem e salvá-la no meu computador, de graça. Assim como depois, posso replicá-la com um ctrl+c, ctrl+v, quantas vezes quiser.
Para o pessoal do NFT, porém, isso é uma heresia. Não há o senso de exclusividade. A minha mentalidade é a de um plebeu, um reles mortal que baixa imagens da internet sem ser dono delas. Como se esses macacos terríveis fossem uma obra perdida de um grande artista! Ainda que fosse, acho que todos concordamos que é melhor ter coisas de valor inestimável em museus, e não na posse de certos indivíduos, ainda que isso aconteça…
Registro aqui minha revolta. Nossa sociedade doente produziu uma nova religião, um distúrbio mental, uma ilusão coletiva chamada NFT. Por muitos motivos, não consigo deixar de pensar no velho Marx. Em 2022, a escassez surge, pelo menos no mundo dos computadores, como artificial. A escassez é uma religião, um fetiche capitalista digital. Esse é o sinal da falência desse sistema de exploração e produção anárquica. Em breve, extinguiremos a escassez no mundo material.





