No dia 19 de abril, completam-se 140 anos do nascimento de Getúlio Vargas. Indiscutivelmente a principal liderança política do século XX, a sua importância, todavia, ainda não é devidamente reconhecida, sequer conhecida. Ele mudou para sempre a história do Brasil, e sua estatura histórica somente é equiparada por José Bonifácio de Andrada e Silva, patriarca da Independência.
Somente na Era Vargas, iniciada com a Revolução de 30, o Brasil conheceu alguma forma de planejamento estratégico. O antigo liberalismo, que conferia à burguesia cafeeira paulista posição de primeiro plano na economia nacional, foi substituído por um novo nacionalismo, que colocava no Estado-nação o eixo estruturador do desenvolvimento nacional, e fez do planejamento econômico, organizado nacionalmente com o Plano Quadrienal de 1940 e, no segundo governo Vargas, com a Assessoria Econômica.
Nesse sentido, Getúlio Vargas preocupou-se em desenvolver o Brasil para dentro, de modo que a industrialização não fosse reflexo de ciclos internacionais de preços de matérias-primas, como era até então, mas a manifestação econômica da soberania nacional sobre os recursos internos. A nacionalização dos minérios e do petróleo, com o Código de Minas (1934) e o Conselho Nacional do Petróleo (1938), a edificação das indústrias de base, como a nacionalização do Lloyd Brasileiro (1938), a Companhia Siderúrgica Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1942) e a Petrobrás (1953), a criação de uma base nacional de estatística para facilitar o planejamento governamental e industrial, com a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (1936), a incorporação dos espaços vazios do interior à dinâmica desenvolvimentista, com a Marcha para Oeste das décadas de 1930 e 1940, e a formação de um sistema financeiro nacional voltado ao financiamento da produção e à internalização dos centros de decisão de investimentos, com a Lei de Usura (1933), a suspensão unilateral do pagamento da dívida externa (1937), o Instituto de Resseguros do Brasil (1939), o Banco Nacional do Crédito Cooperativo (1951), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (1952), o Banco do Nordeste (1953) e a criação das taxas múltiplas de câmbio pela Instrução 70 da Sumoc (1953), alicerçaram o intenso ciclo de desenvolvimento vivido pelo Brasil até a década de 1980, período durante o qual o Brasil foi o país que mais cresceu industrialmente no mundo.
Mais do que emancipação econômica, o desenvolvimento varguista objetivava a emancipação social. O Brasil é um dos poucos países do mundo em que a formação do Estado Social coincidiu com a sua Revolução Industrial. A criação dos Ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Educação e Saúde, logo nos primeiros meses de governo, colocaram o trabalho, a educação e a saúde, pela primeira vez na história do Brasil, no primeiro plano das preocupações nacionais. A educação primária, tornada obrigatória e imbuída de um sentido técnico e patriótico, abriu novos horizontes para uma população até então majoritariamente analfabeta, e serviu como esteio de uma política sanitária para a infância, uma vez que as escolas passaram a funcionar como locais de vacinação. As primeiras campanhas nacionais de combate à varíola, à malária, à febre amarela e a outras doenças tiveram início com Getúlio Vargas. A criação da Universidade do Brasil, em 1938, inicia a formação do sistema universitário federal brasileiro, do qual tanto nos orgulhamos hoje.
Por sua vez, as leis trabalhistas, reunidas na Consolidação das Leis do Trabalho (1943), foram, efetivamente, a segunda Lei Áurea, podendo ser o trabalhismo getulista considerado um segundo abolicionismo, contribuindo para valorizar o trabalho, o que tinha um aspecto imensamente progressista num país em que o ethos escravista ainda predominava. A proibição do trabalho infantil, a limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias, as férias remuneradas, o salário-família, a proteção especial ao trabalho da mulher e do menor, a paridade salarial de gênero e cor para uma mesma função, a obrigatoriedade das empresas de contratarem pelo menos 2/3 de brasileiros no total de seus funcionários, os restaurantes operários do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), a incorporação do sindicalismo às instâncias deliberativas estatais e a formação dos Institutos de Aposentadora e Pensão por categorias, iniciando a construção de uma Previdência Social nacional, constituíram um marco civilizatório, de um desenvolvimento inclusivo dos trabalhadores, assim como fortaleceram o mercado interno, para que a indústria encontrasse no bem estar dos trabalhadores brasileiros a sua fonte de prosperidade. A criação do Serviço Nacional da Indústria (SENAI), em 1942, inaugurou o posteriormente chamado “Sistema S”, uma extraordinária construção assistencial modelada pela cooperação entre capital e trabalho.
Infelizmente, Getúlio não conseguiu estender as leis trabalhistas ao campo, o que somente se efetivaria no governo do seu herdeiro João Goulart, com o Estatuto do Trabalhador Rural (1963), e se aprimoraria nos governos militares, sobretudo nos governos Médici e Geisel, que participaram da Revolução de 30. Essa infeliz limitação não diminui a importância histórica da Era Vargas, que conseguiu introduzir, num país que até poucas décadas antes padecia da escravidão, medidas sociais mais avançadas do que as existentes em muitos dos países industrialmente mais desenvolvidos, dotados de amplas e combativas organizações trabalhistas.
A Era Vargas não construiu o Brasil apenas materialmente e socialmente, mas, da mesma forma, culturalmente. Pela primeira vez, o Brasil dotou-se de uma identidade nacional própria, independente das monarquias e repúblicas europeias e anglo-saxãs que, até então, as oligarquias brasileiras buscavam emular. A partir de Getúlio, o Brasil passa a se entender como uma nação positivamente mestiça e tropical, cuja alma residiria nas manifestações culturais populares, pela primeira vez reconhecidas e valorizadas pelo poder público, como o samba, a capoeira, o Carnaval e o futebol. Pode-se dizer que a Era Vargas institucionalizou o caráter nacional e popular do modernismo da Semana de 22, sedimentando nos corações e mentes brasileiros uma ideia de Brasil que, apesar de tudo, vigora até hoje.
No caso do Carnaval, Getúlio incentivou as escolas de samba a abordarem temas nacionais, de modo que elas contribuíssem para a educação cívica brasileira. No caso do futebol, a sua profissionalização, em 1933, criou os atuais clubes da forma como existem, vinculando o esporte ao ideal de trabalho que se buscava valorizar, e os estádios tornaram-se palco de manifestações cívicas as mais importantes, como o 1º de maio e as celebrações da Independência.
O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão vigente durante o Estado Novo, projetou uma ideia otimista de Brasil, não apenas como um jovem país em desenvolvimento, mas como uma civilização sui generis, capaz de uma contribuição universal, posição essa defendida também pelo famoso escritor austríaco Stefan Zweig em seu livro Brasil País do Futuro, de 1941. O programa radiofônico “Hora do Brasil”, criado em 1938, cumpriu papel importantíssimo na divulgação de notícias referentes aos assuntos nacionais e de artistas brasileiros, que compunham a quase totalidade da sua programação cultural. A Rádio Nacional, encampada em 1940, tornou-se imediatamente um vetor de integração nacional, passando a projetar, para todo o país e até mesmo para o estrangeiro, diversas expressões artísticas brasileiras, como o samba, o baião, o forró, a música caipira e as músicas tradicionais gaúchas. A Rádio Mauá, criada em 1944, voltou-se especificamente aos trabalhadores, funcionando como aglutinador de uma identidade trabalhista. O jornal A Manhã, dirigido pelo escritor Cassiano Ricardo, e a revista Cultura Política, foram fundamentais para a difusão de valores e ideais nacionalistas. A Superintendência de Educação Musical e Artística, criada em 1931 e confiada a Villa-Lobos, instituiu o canto orfeônico nas escolas públicas como forma de moldar o caráter cívico-patriótico das novas gerações. O Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), criado em 1936, e o Instituto Nacional do Livro (INL), criado em 1937, estiveram na linha de frente da política cultural da Era Vargas. Pela primeira vez, o patrimônio histórico e artístico nacional tornou-se oficialmente protegido pelo Estado, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual IPHAN, em 1937.
Não se pode esquecer, ainda, que o governo de Getúlio Vargas tomou posição decidida e decisiva no combate, dentro e fora do país, ao nazifascismo. Em 1938, antes de qualquer país ocidental romper com a Alemanha, o Brasil rompeu relações diplomáticas com a Alemanha ao expulsar o embaixador Karl Ritter, acusado de insuflar separatismos entre os colonos alemães no sul do país, e proibiu o Partido Nazista, a Ação Integralista Brasileira e todos os partidos e movimentos de inspiração nazifascista. Na II Guerra Mundial, o Brasil participou ao lado dos Aliados com a Força Expedicionária Brasileira, que granjeou importantes vitórias em campo de batalha na Europa, além de fornecer borracha e bases militares aos Estados Unidos. Além disso, o Brasil teve importante papel na criação do Estado de Israel.
Não houve, outrossim, nenhum laivo de racismo na política interna de Getúlio Vargas, que estendeu as leis trabalhistas a todos os trabalhadores urbanos, indistintamente, legalizou o samba e a capoeira, criou o Conselho Nacional de Proteção aos Índios, em 1939, e instituiu o Dia do Índio, nesse mesmo dia 19 de abril, data do seu próprio aniversário, em 1943.
Naturalmente, esse pequeno artigo não tem a pretensão de esgotar toda a importância e significado de Getúlio Vargas para o Brasil, cuja profundidade permanecerá por muito tempo ainda insondável. Não se pode negar, contudo, que o aniversariante desse 19 de abril contribuiu, como nenhum outro em seu tempo, para a edificação de um Brasil independente, soberano, desenvolvido e generoso, em suma, o Brasil brasileiro.
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