Que a ideologia identitária é uma arma do imperialismo para se infiltrar na esquerda, no movimento negro, de mulheres, de indígenas etc. como forma da anular a luta dos oprimidos já está mais do que claro. Mas é preciso destacar que na prática a campanha identitária também é uma campanha contra a cultura nacional, o clima repressivo de censura e cancelamento somado ao “estímulo” (financiamento bilionário que vem de fora do Brasil) às pautas identitárias afeta todos os âmbitos da cultura. O último alvo foi o próprio carnaval, uma das maiores expressões da cultura popular brasileira.
A política identitária e de seus maiores proponentes, nos dias de hoje a chamada 3a via, é de ataque frontal ao carnaval. A repressão aberta aos blocos de rua, a manifestação mais popular do carnaval, aumenta todos os anos, em 2022 eles por pouco não foram totalmente proibidos, apenas se mantendo devido a luta dos trabalhadores em sua defesa. Outro ataque identitário ao carnaval é o cancelamento das fantasias tradicionais e a tentativa de cancelar até mesmo os mais tradicionais blocos como o Cacique de Ramos, fundado em 1961 na zona norte do Rio de Janerio.
Mas o destaque desse artigo é ao desfile das escolas de samba. O evento é grandioso, um dos maiores desfiles do planeta, admirado por centenas de milhões, organiza dezenas de milhares de pessoas, milhares de ritmistas, dezenas de carros alegóricos, e investimentos de milhões de reais e mesmo assim ainda tem suas origens nas favelas e bairros operários. A burguesia tem o interesse em controlar esse evento devido aos lucros gigantescos que ele gera, com destaque para a Rede Globo, que detêm o monopólio da transmissão há décadas. A política para o desfile não é a da repressão, como fazem com os blocos de rua, mas de o manter sob um forte controle ideológico, é ai que entra o identitarismo.
O Samba Enredo e a história do Brasil
Os desfiles temáticos com samba enredo composto para o próprio evento existem desde a década de 1940, a tradição de exaltar eventos da história brasileira também se inciou nessa década. Já em 1949 o samba enredo do Império Serrano, A Inconfidência Mineira, ou Tiradentes, de Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau Silva inauguraria o samba enredo de exaltação histórica. Na década de 1960 esse aspecto já havia se tornado uma tradição carnavalesca. Não só eventos históricos mas importantes artista e obras da literatura nacional ganhavam destaque, o samba-enredo da Portela de 1966 homenageou o livro Memórias do Sargento de Milícias, em 1967 o samba da Mangueira foi O mundo encantado de Monteiro Lobato.
Exaltação a Frei Caneca o primeiro samba enredo da Unidos do Jacarezinho, escola de samba que o PCO desfilará no próximo sábado, composto por Mestre Mornaco da Portela celebrava os 150 anos da Revolução Pernambucana de 1817. Outro samba enredo imortalizado por Martinho da Vila, Dia do Fico, de 1962 comemorava os 140 anos de um dos mais importantes eventos da independência brasileira. O refrão, a musicalização da famosa frase de D. Pedro I: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digo ao povo que fico!” é uma das mais emblemáticas uniões do samba com a história nacional. Aqui podemos destacar o óbvio, o carnaval tradicional nada tem de identitarismo, agora passemos ao ano de 2022.
Nos 200 anos da Independência do Brasil, e 100 anos da fundação do PCB, da Semana de Arte Moderna e do Levante dos 18 do Forte as principais escolas de samba do país não abordaram nenhum desses temas. No grupo especial do Rio de Janeiro 6 das 12 escolas tiveram temas de temáticas africanas e indígenas, uma clara influência do identitarismo, que ficou escancarado no samba enredo da Beija Flor de Nilópolis: Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor, que chega ao cúmulo de ter a expressão lugar de fala no refrão.
As outras 5 escolas abordam temas como Fala, Majeté! As sete chaves de Exu, Ka Ríba Tí Ÿe – Que Nossos Caminhos se Abram, ou Igi Osè Baobá. A crítica aqui não é ao fato de terem escolhido aspectos da cultura africana e afrobrasileira como enredo, afinal as comunidades pobres do Rio de Janeiro, em conjunto com as de Salvador, são onde essa cultura é mais forte no Brasil. Mas não se pode ignorar que isso, somado a ausência dos tradicionais temas históricos faz parte da pressão do identitarismo sobre as escolas de samba.
Aqui vale comparar 2022 com o ano 2000, quando se fazia 500 anos do descobrimento do Brasil. Naquele ano os sambas-enredo trataram do tema de diversos ângulos possíveis, inclusive de forma bem crítica, vejamos alguns:
Quem Descobriu O Brasil, Foi Seu Cabral, No Dia 22 De Abril, Dois Meses Depois Do Carnaval… – Imperatriz Leopoldinense
Brasil, Um Coração Que Pulsa Forte, Pátria De Todos Ou Terra De Ninguém – Beija-flor
Dom Obá II, Rei Dos Esfarrapados, Príncipe Do Povo – Mangueira
Eu Sou Índio, Eu Também Sou Imortal – Unidos De Vila Isabel
Sou Rei, Sou Salgueiro, Meu Reinado É Brasileiro – Salgueiro
Terra Dos Papagaios… Navegar Foi Preciso!!! – Unidos Da Tijuca
Ordem, Progresso, Amor E Folia No Milênio Da Fantasia – Unidos Do Porto Da Pedra
O ano 2000, mesmo já existindo a pressão da direita anti-nacional, expressa o carnaval em sua forma mais tradicional. Sambas enredo de todos os tipos, exaltado o descobrimento, destacando o negro, destacando o índio, exaltando o país como um todo mas de forma alguma ignorando a importantíssima data dos 500 anos de Brasil.
No ano de 2022 ficou claro que o ataque da burguesia ao carnaval precisa ser frontalmente combatido. Por pouco os blocos de rua não saíram às ruas, e mesmo saindo não alcançaram o que deveriam ter sido, devido a repressão. Enquanto isso a direita enquadra a carnaval em suas festas fechadas e no controle sobre o desfile das Escolas de Samba. E a linha de frente ideológica desse ataque ao carnaval é o próprio identitarismo, que deve ser rejeitado por todos que defendem a soberania de nosso povo e de nossa cultura ante os ataques de forças políticas de fora do Brasil, que querem nos dominar.
Para compreender a relevância do Samba Enredo para o Brasil vale fechar o artigo com um comentário de um dos maiores defensores de nossa música, José Ramos Tinhorão, comentando o disco de Martinho da Vlia, Samba Enredo (o mesmo que imortalizou Dia do Fico):
“Os trabalhadores brasileiros descendentes dos antigos escravos negros souberam sobrepor-se às próprias contradições criando com o samba-enredo uma das formas mais originais de canto coletivo do mundo moderno: o hino coral que, em ritmo de samba, leva toda a sociedade brasileira às ruas em determinado momento, para o canto uníssono da afirmação do caráter nacional de um povo.”




