O episódio da tentativa de queima da estátua de Borba Gato (1649-1718) colocou em pauta diversas questões do identitarismo – um movimento abertamente imperialista – contudo, evidencia a falta de rumo de um setor da esquerda pequeno-burguesa, também em relação à arte. Se omite de uma discussão real do papel do artista na transformação social, e vive atrelada às “invenções artísticas” da burguesia brasileira. Quando apoia a queima da estátua do bandeirante Borba Gato, se esquece, ou não, que está destruindo uma obra de arte de um artista popular de São Paulo: Júlio Guerra (1912-2001).
Nascido em Santo Amaro em 20/01/1912, quando o atual bairro era ainda Cidade, Julio Guerra era oriundo de uma família que mantinha a chamada “Tradição de Santo Amaro”. Os moradores possuíam muito orgulho de terem a mesma origem dos então chamados “desbravadores bandeirantes”, sendo um deles Borba Gato. O próprio artista Júlio Guerra, citava outros grandes personagens de Santo Amaro que tinha orgulho como Paulo Emilio de Salles Chagas Eiró, conhecido como Paulo Eiró, poeta e dramaturgo nascido em Santo Amaro. Porém, Borba Gato sempre foi o elemento com maiores proporções e chamava mais a atenção da população local. Há fontes que dizem que o escultor também possuía laços familiares longínquos com Borba Gato. Seu avô, Chico Gato, era descendente direto do bandeirante. Também é um fato típico de regiões brasileiras, que se desenvolvem ídolos sem nem mesmo conhecer a fundo a história, apenas pela projeção histórica. Temos Lampião, Bento Gonçalves e outros tantos, que querendo ou não fazem parte da nossa história.
Abaixo fotos dos murais que encontram-se junto da estátua com personagens de Santo Amaro. Também nota-se uma influência de Portinari que o próprio Júlio Guerra não negava.
Julio Guerra, em 1930, iniciou seus estudos na ainda nova Escola de Belas Artes de São Paulo. Logo após sua formatura trabalhou para quem considerou um dos seus grandes professores: o escultor brasileiro Victor Brecheret. Guerra teve uma contribuição fundamental no Monumento a Duque de Caxias, tendo trabalhado de 1942 a 1946 com Brecheret. O monumento localizado na Praça Princesa Isabel, Campos Elíseos, São Paulo, é um dos maiores monumentos brasileiros e no tema um dos maiores do mundo.
Tendo tido toda essa influência e levando em consideração a projeção nacional de Borba Gato, que segundo ele era a figura mais conhecida de Santo Amaro, Júlio Guerra decidiu produzir mini estátuas de Borba Gato e chegou a ganhar um prêmio Governo do Estado com a escultura. Após toda uma campanha onde se desejava ter a estátua em 1960, na comemoração do IV centenário de Santo Amaro, foi liberado através do estado de São Paulo uma verba para a construção. Em 1957, Júlio Guerra iniciou, na sua própria residência, a construção concluindo-a em 1963, o atraso é consequência da morte de seu filho. A peça teve o uso de pedras brasileiras para cobrimento, suscitando críticas, porém atraindo a cultura local por seu visual mais pitoresco e popular. Com seu centro em concreto e trilhos de trem para sustentação mede 10 metros, chegando a 13 metros com a base e pesando 40 toneladas.
O que é de pouco conhecimento, é que Júlio Guerra possui no seu currículo esculturas como a mãe preta (1954), peça em bronze que faz homenagem aos negros escravizados, em frente à Igreja de São Benedito, no largo Paiçandu em São Paulo. A escultura virou palco de devoção, atraindo devotos que acendem velas para a mãe preta ao redor da obra.
A Mãe Preta é um dos símbolos da escravidão no Brasil e se refere às escravas que tinham que amamentar os filhos dos senhores. É uma personagem da história e da cultura nacional, como podemos ver nesse clássico da Música Brasileira, dos sambistas Caco Velho e Piratini.
Mãe Preta
Autor: Caco Velho e Piratini
Pele encarquilhada carapinha branca
Gandola de renda caindo na anca
Embalando o berço do filho do sinhô
Que há pouco tempo a sinhá ganhou
Era assim que mãe preta fazia
Criava todo branco com muita alegria
Enquanto na senzala Pai João apanhava
Mãe preta mais uma lágrima enxugava
Mãe preta, mãe preta
Enquanto a chibata batia em seu amor
Mãe preta embalava o filho branco do sinhô
O grave nessa polêmica sobre o Borba Gato é a posição ridícula da esquerda brasileira, quando apoia a depredação de uma obra de arte sem propósito político real agindo para apagar a história, como se fosse possível uma nova história acontecer apenas por “apagar” a anterior.
A história do Brasil e de todos os países é um produto da contradição inerente da luta de classes e simplesmente tentar apagar monumentos não elimina essas contradições.
A crise sem paralelo que a arte vem enfrentando, com ataques sistemáticos do capitalismo que transforma qualquer expressão em pura mercadoria de compra e venda, que prostitui o próprio artista e joga todo um setor no mecanicismo de produção, estes, deveriam ser atacados e combatidos. Muito além de queimar qualquer estátua de um artista popular, este setor deveria se ocupar com os inimigos vivos, que apoiam grandes inimigos da arte como o fascismo e esmaga os artistas.
Fica claro que Júlio Guerra não era nenhum reacionário. Sua obra reflete as contradições da própria sociedade em que ele viveu. Se essa característica fosse suficiente para vandalizar a obra de um artista não sobraria nada. Em última instância se deveria queimar tudo, apagar tudo, fazer tábula rasa do que foi criado pela cultura brasileira.