Governadores e prefeitos de norte a sul do Brasil decretaram medidas de lockdown noturno em vários Estados, isto é, a proibição da circulação de pessoas pelo menos entre 23 horas e 5 horas da manhã, como pretende o governador João Doria (PSDB) em S. Paulo, por exemplo. Para restringir a circulação de pessoas à noite, devem estar se baseando em uma descoberta espantosa que ninguém, até agora, anunciou: o coronavírus não gosta de trabalhar, pelo menos não como a maioria da população. É dado a festejar a noite inteira, frequenta bares, restaurantes, festas e afins, enquanto se recolhe durante o dia nas grandes aglomerações urbanas, em empresas, escolas etc. É um vírus boêmio.
Talvez o grande cientista e democrata que governa o Estado mais populoso do País, onde está situada a décima maior região metropolitana do planeta, não saiba a que horas as estações do Metrô e da CPTM abrem e fecham, nem que os horários de pico na circulação de pessoas de casa para o trabalho seja de 6h30 às 8h e do trabalho para casa, de 17h às 19h. O pretexto oficial para a repreensão, aplicação de multas e até mesmo a prisão dos infratores está em que ao circularem durante a noite em “baladas” diversas, os jovens (a maioria dos que as frequentam) tomam menos cuidado com o distanciamento social e medidas de higiene. Por não manifestarem sintomas ou o fazerem em menor número, os jovens são considerados vetores de transmissão da covid-19, uma ameaça a seus entes queridos e colegas de trabalho (porque trabalhar, tudo bem. Folgar, não).
Ao impor o lockdown noturno, as autoridades estão evitando uma medida mais drástica e impopular: a restrição de circulação de pessoas por faixa etária durante todo o dia. Não duvido que alguém lá em cima já tenha pensado nisso. Ora, se já pensaram até mesmo nos benefícios da pandemia para o equilíbrio das contas da Previdência, tudo é possível.
Desde o início da pandemia, um ano atrás, os democratas de plantão (como se ser direitista e irracional fosse privilégio de Bolsonaro) não deram nenhuma condição para que a sua campanha “fique em casa” fosse mais do que mera demagogia. Como a maior parte da população foi forçada a continuar trabalhando durante o dia, vão agora apenas repetir ao seu “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” durante a noite. Ou, por acaso, os trabalhadores do Metrô, que têm umas poucas horas entre o fechamento das estações e sua reabertura para executar suas tarefas, serão dispensados? E o setor de obras e manutenção das vias públicas? A limpeza, os vigias, porteiros, seguranças, motoristas de transporte público e trabalhadores de fábricas e indústrias cujos serviços noturnos são considerados essenciais? O “fique em casa durante a noite também” se aplica a eles, ou são só os festeiros notívagos, frequentadores da “night”, que correm o risco de contrair o coronavírus depois do pôr do sol?
Das mais ou menos 100 milhões de pessoas trabalhando no país hoje, 15 milhões trabalham à noite. Não é para preservar a vida delas que as autoridades iluminadas pela ciência decidiram restringir a circulação noturna. Como grandes cientistas que são, devem ter a seu lado grandes matemáticos que possam explicar como é que permitir o contato social de dezenas de milhões de pessoas durante o dia pode ser contrabalançado por restringir a circulação de alguns milhões à noite. Há ainda uma possibilidade. Governos e prefeituras estão unidos em um esforço nacional para combater uma epidemia de sonambulismo. Assim, ao decretar que ninguém pode sair de casa na hora de dormir, estariam garantindo a segurança dos afetados por esse distúrbio do sono. Talvez nisso tenham resultado.
Enquanto isso, a ciência que não governa o país, no entanto, diz outra coisa. Os vírus são mais perigosos de manhã do que à noite, afirma um estudo da Universidade de Cambridge. “A pesquisa, publicada pela revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, mostrou que os vírus têm dez vezes mais sucesso em adoecer a sua ‘vítima’ se a infecção tiver início pela manhã, aparentemente porque nosso relógio biológico está mais suscetível”, diz o estudo.
A ciência que se faz por decreto decidiu: ninguém mais pode sair de casa na hora de dormir. Enquanto isso… não há leitos nos hospitais, não há máscaras e álcool, não há distanciamento social nos transportes, não há dispensa dos trabalhadores dos serviços não essenciais, redução da jornada, proteção dos salários e empregos, um levantamento dos locais e regiões em que o contágio é maior, medidas de profilaxia, uma campanha e os meios para que a população tome os cuidados necessários e, é claro, é claro, é claro, vacina para todos. Não. É mais fácil tentar parar o vírus na porrada…