Autor de inúmeras obras que marcaram uma geração de artistas plásticos, no início do século passado, Di Cavalcanti consolidou a sua arte ao lado dos demais artistas representantes do Modernismo brasileiro, como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti – também na pintura – e Mário de Andrade – na literatura e crítica literária, além de sua singular contribuição aos estudos musicais. As obras do pintor são o ponto central da exposição “Di Cavalcanti, Muralista”, que fica aberta ao público até este domingo (17 de outubro de 2021), no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, com entrada gratuita.
O Instituto disponibiliza a reunião de murais com temáticas caras ao pintor: a classe trabalhadora e as manifestações festivas típicas populares da cultura brasileira – dando especial destaque para o samba e o Carnaval. É inegável a presença dos traços cubista nos murais de Di Cavalcanti, tal influência pode ser atribuída ao tempo que passou na Academia Ranson, em Paris, e às viagens realizadas pela Europa entre os anos de 1923 e 1925, quando teve contato direto com os principais representantes deste movimento, Pablo Picasso, Matisse – em certa medida em suas produções – e Fernand Léger; além de estabelecer uma relação amistosa com nomes conhecidos entre os membros do teatro do absurdo, Jean Cocteau e Erik Satie.
Ao regressar ao Brasil, Di Cavalcanti ingressou no Partido Comunista Brasileiro, parte fundamental de sua vida pessoal, bem como de suas produções artísticas. Apesar de suas duas prisões, no ano de 1932 – em decorrência de sua participação na Revolução Constitucionalista de 1932 – e novamente em 1936, o artista não deixou de expressar as suas profundas críticas ao militarismo da época, através das representações satíricas que constituem, por exemplo, o álbum “A Realidade Brasileira”. Com o avanço do stalinismo nos diferentes meios políticos comunistas do período, Di Cavalcanti encontra certa incerteza na relação entre suas obras e os ideais propagados de então. Contudo, o apreço pela classe trabalhadora e sua constante luta contra a dominação e opressão burguesa nunca abandonaram suas telas, bem como o reconhecimento de uma identidade autenticamente nacional, distante das perspectivas da arte tradicional europeia.
A elaboração da exposição das obras no Instituto seguem em duas partes: a primeira é destinada às diferentes reproduções do trabalho, desde o trabalho braçal de homens e mulheres – retratado no mural “Pescadores”, de 1946 -, ou ainda no contínuo e maquinal exercício nos grandes centros metropolitanos. As reproduções de Di Cavalcanti reagem em uníssono com a diversidade de cores e traços presentes no cotidiano da classe trabalhadora, a qual se mostra em constante movimento, porém sem nunca perder a sua singularidade e força – tal qual em “Feira Nordestina”, datada em 1951 -; a gravidade de suas telas se expressa de modo pungente em “Mulheres do mangue” (1948), ao direcionar seu olhar às figuras que precisam se sujeitar à venda da carne, do corpo, em troca da sobrevivência, garantindo a postura do pintor, que não ignora todas as mazelas que constituem a classe oprimida pelo capital e aqueles que a constituem. Ainda na primeira parte da exposição, quatro grandes murais colocam-se em destaque, intitulados “Brasil em 4 fases I [e] II” (1965): nesta composição Di Cavalcanti percorre os principais momentos da história nacional, a reprodução do período do descobrimento – adornado de diferentes tons de verde e a elaboração da figura do índio dentro de sua estética , seguido da exposição do período colonial, do desenvolvimento cultural durante a vinda da família real, e – por fim – o Brasil metrópole já moderno – cada composição constituída de elementos característicos de cada período, consoante em cores e traços que os tornariam tão singulares.
A segunda parte da exposição volta-se aos murais e telas que rememoram as comemorações típicas nacionais. O Carnaval e samba se fundem em uma algazarra generalizada e se concretizam com a vivacidade de tons e formas, da pluralidade de homens e mulheres embalados num mesmo ritmo constante que pulsa e envolve o íntimo daqueles que experienciam novamente essas manifestações, através dos olhos e das pinceladas do artista. Obras como “O samba”, de 1927, e “O carnaval”, de 1925, ganham destaque pela efusão de sensações, memórias e sons a emergirem da arte. A dança e a música brasileira se sobressaem como únicas, não mais submissas aos dogmas artísticos das distantes acepções culturais europeias.
Di Cavalcanti deve ser lembrado não apenas como um dos mais importantes pintores brasileiros do séc. XX, mas – principalmente – como um ativo elemento político que se valeu de sua arte para perpetuar – sob seus sagazes olhos – a classe trabalhadora e o que a torna genuína.