Com a crise política agravada pela pandemia do Covid-19, vários bares e casas de show populares, principalmente as de pequeno porte, estão encerrando as suas atividades. Esses espaços, tidos como espaços culturais, por manterem vivas as tradições da cultura brasileira, como as rodas de samba, por exemplo, além de incentivarem a produção independente, não tiveram quase nenhum apoio do Estado para manter-se nesses mais de um ano em que o País enfrenta uma quarentena quase permanente por conta da pandemia.
Como resultado, esses espaços acumularam dívidas. A maioria recorreu a vaquinhas e outras formas de arrecadação colaborativa para não ter que fechar as suas portas.
Um ano de crise e a situação está cada vez mais grave com recrudescimento tanto da pandemia como das políticas genocidas. A situação dos artistas independentes e pequenos comerciantes na pandemia revela uma série de problemas. Os efeitos negativos da crise não são todos perceptíveis. Como estimar a perda de um bem cultural imaterial, como as rodas de samba que estes espaços e artistas mantêm?
O setor cultural, que sempre esteve no fim da fila, com o aprofundamento da crise do capitalismo e o golpe de 2016, enfrentou não só cortes de verbas, mas uma verdadeira política de austeridade e coerção para as manifestações artísticas e culturais. O Ministério da Cultura, relegado a uma secretaria no governo ilegítimo de Bolsonaro, foi desmantelado, mantendo de fachada os programas e editais do setor, que só funcionaram para uma minoria, aqueles “artistas” da burguesia.
De museus abandonados à censura e perseguição de artistas, o setor cultural que já estava agonizando, com a pandemia e a necessidade do isolamento social, chegou no fundo do poço. Os pequenos equipamentos culturais, galerias, cinemas, bares, casas de shows, fecharam as suas portas. Toda a rede de trabalhadores da cultura, que sustentam estes espaços foi duramente prejudicada. Os artistas independentes, que dependiam diretamente do contato com o público, ficaram perdidos sem ter como trabalhar. Tiveram que se reinventar, passando a viver de ações solidárias ou mudando de atuação completamente.
Uma perda incalculável
Tradicionais casas de samba como a Casa de Francisca, conhecida como “a menor casa de shows de São Paulo”, localizada na antiga esquina musical da cidade, no Palacete Tereza Toledo Lara, de 1910; e a Trapiche Gamboa, inaugurada em 2004, que ocupava um casarão do século XIX, perto do Cais do Valongo, no centro histórico do Rio de Janeiro, encerraram as suas atividades neste último mês. O Ó do Borogodó, na Vila Madalena em SP, uma das casas onde acontece as mais tradicionais rodas de samba da cidade, com quase duas décadas de funcionamento teve que recorrer a uma campanha financeira para não ser despejada.
De fato, esses espaços não tiveram nenhuma medida do Estado para garantir a sua sobrevivência, com exceção da Lei Aldir Blanc. Mais de 30% de bares e restaurantes foram fechados até o momento no estado paulista, e 72% dos estabelecimentos operam no prejuízo, segundo dados da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). Realidade semelhante nos outros estados, onde 70% desses estabelecimentos deverão fechar no próximo mês por falta de condições financeiras.
O fechamento destes estabelecimentos representa uma perda na cadeia econômica e cultural. Muitos já encerraram suas atividades para sempre, como o espaço Morfeus Club, conhecido como o berço do Trap Nacional, em Santa Cecília; a Casa do Mancha, espaço alternativo de música indie rock, localizado na Vila Madalena; a Barbarella Boite, a boate eternizada na voz de Cazuza, no bairro de Copacabana no RJ, com 44 anos de existência. O Bourbon Street, uma das casas de jazz e blues mais tradicionais de SP, já foi palco de B.B. King e Nina Simone, também está ameaçada de extinção.
A luta dos espaços
O Ó do Borogodó por muito pouco não foi despejado. No dia 7 de março, anunciaram que seria o fim, mas com 11 dias de campanha, por meio de uma vaquinha virtual, “# FicaÓ”, conseguiram com o apoio irrestrito dos músicos e de seu público reverter a ordem de despejo. Estefânia Gola, sócia da casa, contou para o DCO um pouco sobre a saga para manter o Ó vivo durante a pandemia.
No começo da pandemia fizeram várias campanhas de arrecadação, feijoada, além de uma live semanal, onde recebiam músicos para uma conversa, que apesar de ter uma arrecadação bem pequena, mas somada à ajuda dos clientes e amigos, deu para manter o salário dos funcionários. Estefânia conta que foram contemplados pela Lei Aldir Blanc. O prêmio foi para a modalidade dos coletivos de artistas, com todos os músicos do Ó inscritos. “Foi de verdade o único dinheiro que entrou desde o fechamento, e que realmente ajudou muito. Podemos ajudar bastante gente e segurar algumas pontas para gente também’’.
Diante de mais um ano de luta e da certeza de que espaços ficarão fechados, Gola já está pensando em novas estratégias para o espaço sobreviver e para manter o salário dos funcionários. “Não faz sentido colocar os artistas e os trabalhadores brigando contra o lockdown. Ficamos como os vilões da sociedade. Sinto que as casas que não entendiam isso, começam a entender que temos que brigar junto pelo lockdown, com auxilio. A sociedade precisa dividir essa conta”.
O governo que não tomou nem uma medida no ano passado para ajudar os pequenos comerciantes, e ainda autorizou os despejos, poderia agora: “…ter uma intervenção sobre a taxação dos preços de aluguel, a suspensão da cobrança da água e luz, e de todos os tributos. O Estado poderia financiar para todos os estabelecimentos negativados”.
Estefânia acredita que uma saída seja fazer parceiras com o setor privado, que continuam ganhando muito dinheiro, como as cervejarias. Elas gastam muito com publicidade, quando poderiam investir nas casas e patrocinar o show dos artistas independentes.
Os espaços de cultura e os artistas são um dos mais atingidos pela pandemia, afirma. Que nos lembra que os artistas nunca deram lucro, desde tempos antigos sempre teve quem os bancasse. “Não dá lucro fazer roda de samba. Não tem uma matemática que vai dizer que isso é um grande investimento para o empresário. Ou alguém olha para gente, ou realmente vai desaparecer”.
O Bar do Baixo, há três anos na Vila Madalena em SP, também famoso pela qualidade dos shows, para manter-se vivo, de um espaço de cultura passou para um restaurante de delivery. O bar, no seu antigo endereço chegou a ser lacrado com placas de concreto arbitrariamente, provavelmente por pressão imobiliária. Muitos espaços sofrem esse tipos de repressão, principalmente em bairros ricos.
O proprietário Gabriel Toledo conta que desde o início da pandemia, mesmo com todo o sufoco, estão fazendo ações de arrecadação e distribuição de marmitas, cobertores e máscaras para as populações carentes. “O que nos ajudou a manter a cabeça ativa e o o nosso espaço como lugar de resistência.” Eles estão agora com uma companha de arrecadação para cobrir a folha de pagamento dos funcionários, que permaneceram todos empregados.
Toledo, que também é músico, conta que no inicio deu para ajudar um pouco os artistas, que sempre tiveram o cachê fechado, pois o bar não cobrava couvert. Agora eles todos ajudam para ver se a casa retorna. “O Bar do Baixo sempre agregou muitos artistas, aos sábados, por exemplo, tínhamos duas a três bandas tocando, de segunda a domingo com música ao vivo”.
“Embora sejamos da área do comércio, nós somos um ponto de cultura“, Toledo acredita que se tivéssemos um governo sério a pauta da cultura teria destaque, pois a área de entretenimento, além de circular a cultura gera muitos empregos e economia.
O Espaço Maria Morena, na cidade de Planaltina, periferia de Brasília, é outro exemplo de espaço de cultura que está sucumbindo na pandemia. O espaço que, além de bar com música ao vivo, funciona como um ateliê de artes e de dança, com atividades de economia criativa está com campanha de arrecadação voluntária desde o início da pandemia. Gilson Sena, músico e proprietário, conta que ele e sua companheira a artesã Flávia Maria estão entregando o aluguel da sua casa e indo morar em uma das salas do estabelecimento.
A luta dos artistas
Para os artistas independentes do ramo do musical, aqueles que realmente não estão ligados a nenhuma corporação, a situação que já era difícil ficou ainda pior. Em geral, esses artistas dependiam de dar aula, de tocar na noite em espaços independentes, fazer uma gravação. Douglas Germano, cantor e compositor comenta, “Para os artistas independentes sempre foi essa coisa de vender o almoço para comprar a jantar“.
Com a crise sanitária, muitos ficaram impossibilitados de continuar divulgando e produzindo sua arte. Sem apoio do governo e sem espaço para trabalhar, os artistas se viram obrigados a “passar chapéu na rede social”. Tem músicos aí geniais dirigindo carro para aplicativo, rifando seus instrumentos, fazendo bico. Fazendo o que é possível, porque efetivamente o mercado de trabalho se contraiu de uma maneira abrupta, como nunca antes visto, desabafa Fernando Szegeri, sambista e compositor.
Qualquer tipo de manifestação artística que depende do envolvimento coletivo, está enforcadíssima, padecendo. Agora, quando nem estes espaços conseguem sobreviver, por conta do fechamento motivado pela pandemia, então aí realmente os artistas ficam à própria sorte, continua Szegeri.
Fernando Szegeri vê uma árdua travessia, principalmente para as manifestações artísticas que historicamente e efetivamente são formadas pela coisa presencial, pelo público, como a roda de samba e o carnaval. Sem um horizonte minimamente vislumbrado, a curto prazo e médio prazo, a “grande interrogação que se coloca é como nós não vamos deixar a nossa arte morrer com esse novo cenário, que a gente não sabe até quando vai durar?“
As apresentações artísticas foram todas canceladas. Muitos artistas tinham trabalhos engatilhados e uma perspectiva de sustento. As instituições, como SESC, por exemplo, poderiam ter proposto para os artistas já contratados uma ação no sentido de manter alguns espetáculos, ou oferecer 50% e pagar o resto quando fosse realizado. Como um “acordo de lealdade”, conforme sugere Douglas Germano. Que ainda lembra que por trás de um artista às vezes tem uns 15 profissionais que também dependem disso.
Germano desmascara o lugar das lives, único espaço que restou para os artistas continuarem existindo. Para ele, gravar alguma coisa e colocar nas redes sociais não representa retorno real para sobrevivência do artista, nem antes, muito menos agora. E pode até soar como mau gosto, quando se tem milhares de pessoas morrendo, os artistas tendo de fingir está tudo bem, fazer um clima de festa para seu público curtir a live.
A situação da pandemia mostrou como os artistas têm uma relação de quase servidão com as redes sociais, que estão tendo um alto faturamento com a ascensão dessa modalidade. “As instituições, o mercado, a internet, os portais, as instituições de arrecadações de direitos autorais, os selos musicais, os selos independentes, também deles nada saiu. Nenhum tipo de ação que pudesse mudar essa situação.”, denuncia o músico.
A exposição nas redes sociais pode causar uma impressão contrária do público. O artista pode ter vários seguidores, mas não significa nada, porque não vira recurso. “O artista pode estar disponível para abrir uma live, mas não dá para fazer uma live e não ganhar nada com isso. Não dá para pagar um aluguel com like. Que se estipule um valor monetário para o like.”, relata Douglas Germano.
A Lei Aldir Blanc
A lei Aldir Blanc (1075/2020), aprovada no Congresso no dia 29 julho de 2020, depois de muita pressão popular, previa parcelas de R$ 3.000, R$ 6.000 e R$ 10 mil mensais para espaços culturais e casas de shows que tiveram as atividades interrompidas devido à pandemia. O que parecia um alento para a classe artística não passou de pura demagogia do governo. Os trabalhadores da cultura enfrentaram uma enorme burocracia que dificultou e atrasou repasse do recurso. Milhares de artistas nem chegaram a ser habilitados no edital.
O ano passou e o governo não conseguiu gastar todo o recurso. A Secretaria Especial de Cultura em um levantamento sobre a situação atual da execução dos recursos da Lei Aldir Blanc constatou que dos 811 municípios pesquisados, 65% ainda tinham recursos comprometidos que não entraram em processo de pagamento, segundo dados da Agência Câmara de Notícias. Foi preciso uma medida provisória (MP1019/20) para prorrogar o prazo para utilização dos recursos da Lei Aldir Blanc, que ainda precisa ser votada. Mesmo assim ainda seria necessária uma nova edição da lei para dar conta de atender a classe artística em 2021.
“Tiveram situações que os artistas não se qualificaram para a Lei Aldir Blanc, por que fizeram carreira em outra cidade, em geral uma capital, então, não tinham como comprovar seu trabalho no município onde moravam. Assim, eles não puderam concorrer naquela capital, porque não moravam naquela capital”, critica Germano. Outro problema apontado por ele e por Gilson Sena foi o caso das pessoas que antes da pandemia tinham um trabalho regular com rendimento que não permitiu nenhum tipo de auxílio. “Tem que ser miserável para poder ganhar o edital”, diz Sena. Gabriel Toledo e Sena colocam também a dificuldade que muitos artistas têm para se organizar e escrever uma proposta de edital, que exige outra experiência, que foge dos conhecimentos inerentes à profissão do artista.
Por outro lado, na opinião de Estefânia, a lei precisa ser estendida e desburocratizada. “Acho que a Lei foi pensada numa maneira generosa, para chegar em todos, sem burocracia, sem grandes comprovações, podendo estar negativado, ou seja, acho que ela funcionou, porém é muito pouco perto da lama que a gente está vivendo”.
“A classe artística está fazendo pressão, mas sinto que não está ecoando para a sociedade. Porque era a única maneira de segurar os artistas e espaços, não tem outra maneira.”, diz Estefânia.
Fernando Szegeri aprofunda a questão e diz que é preciso uma transformação acerca da gestão das políticas públicas voltadas para a cultura no País, que não se encerra no financiamento como da Lei Aldir Blanc. “De vez em quando sai um financiamento, aí os artistas têm que se envolver numa corrida fratricida entre si”.
“O que realmente nós temos é investimento privado e predatório visando normalmente a lógica do lucro. Não a lógica da produção artística. O Estado se exime durante anos e anos incentivou formas privadas de financiamento, através de mecanismos espúrios como a Lei Rouanet, etc.” Os trabalhadores da cultura precisam de investimento permanente para que possam efetivamente se dedicar às suas criações, aponta Szegeri. Tanto investimento na formação profissional do artista, como para a manutenção de espaços onde a população possa ter acesso também à produção, além de aproximar as produções artísticas da escola. “Porque não adianta o artista produzir e não ter como fazer isso chegar à população”.
Casas de samba, lugar de resistência, lugar de criação
Douglas Germano conta que foi no Ó do Borogodó o primeiro lugar onde ele pôde expor as suas músicas do jeito que imaginava. E o seu primeiro show próprio foi na Casa de Francisca. Para ele, o fechamento dessas casas é uma enorme perda, “porque todas as figuras que conseguiram alguma visibilidade, mesmo que pouca, agora nessa última década, são artistas que saíram dentro dessas casas.”
Ele ressalta que esses espaços são importantíssimos para a sua história e para muitos de seus colegas como: Kiko Dinucci, Jussara Marçal, Tiago França, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, dentre muitos outros. Instrumentistas geniais, Jean Correira, Fábio Peron. Cantoras fantásticas como Anair Rosa, Juliana Amaral.
Esses espaços permitiram que artistas independentes, que estavam iniciando sua carreira apresentassem os seus trabalhos, possibilitando tanto a formação de público, como a experimentação para o aprimoramento do trabalho. “Ao tocar nessas casas, você jamais iria receber um papelzinho pedindo toca Djavan. Ali o trabalho era todo autoral. Djavan não ficou famoso tocando Rita Lee, mas sim suas próprias músicas.” São espaços que deixaram florescer as novas caras para a música brasileira em SP.
A liberdade é condição para criação artística. Inúmeros artistas talentosos acabam moldando o seu trabalho para tentar se encaixar de alguma maneira, por falta de estímulo que um espaço como o Ó do Borogodó dava. Fernando Szegeri exalta o potencial desses espaços para criação do artista. Fala que nesses espaços os artistas eram tratados com respeito. “A Casa de Francisca a mesma coisa, o Rubão sempre deu muita liberdade para todo mundo trabalhar e conseguir expor o seu ponto de vista, a final de contas isso tem a ver com o seu cotidiano, com o nosso tempo. Tem a ver com a história da nação e a arte registra isso”.
Qualquer espaço cultural que dê liberdade para o artista é fundamental para a produção e difusão da arte. Contudo, espaços como o Ó do Borogodó e a Casa de Francisca, que acumulam muita história, muita paixão, adquirem uma inserção social e viram uma tradição. Viram uma entidade que carrega um valor simbólico que não se reconstrói de uma hora para outra. Com o fechamento desses espaços “você esfacela vínculos de pertencimento cultural e de reprodução cultural, que você nunca mais vai conseguir enredar”, lamenta Szegeri.
“Imagina quando tudo passar, e não tem mais o botequim para a roda de samba, não tem mais a casa para o show? Você vai desorganizando todos os coletivos, e quando volta você não tem uma cidade preparada para receber esses artistas”, lamenta Estefânia.
Estimar o que se perde com o fechamento desses espaços vai muito além da questão econômica, da cadeia produtiva e de um lugar de convivência. Representa uma perda para os artistas, para o público, para toda a sociedade. O que se perde é a possibilidade de perpetuação da cultura brasileira.