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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Cinema

Não Olhe Para Cima: o fim do capitalismo se aproxima

A subjetividade ordinária, em especial da burguesia, é a única possível no capitalismo e a catástrofe o único final plausível.

nao olhe para cima trailer

Por que, no cinema americano, é sempre mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? O tema do fim do mundo, claro, vende mais ingressos de cinema e assinaturas de streaming do que outros enredos.

Porém, a repetição da mesma narrativa revela um sintoma particular da sociedade americana que é a incapacidade de criar histórias que enfrentem a contradição principal do nosso momento histórico: o capitalismo é um meteoro ao qual os Estados Unidos morrerão abraçados levando o resto do mundo junto.

Esta é a conclusão que chegamos ao final do mais recente filme-catástrofe produzido por Hollywood: Não Olhe Para Cima (Don´t Look Up), dirigido por Adam Mckay, o mesmo de A Grande Aposta (The Big Short, 2015), uma tentativa de explicar o apocalipse financeiro de 2008.

Nos dois filmes, a mesma receita: é a indigência moral de indivíduos canalhas que leva a catástrofes que seriam evitáveis.  Desta maneira, conclui-se que se os canalhas deixarem de existir poderemos todos nos salvar e voltar para nossas vidas felizes.

Ledo engano. Não é a burrice boçal individual que causa os problemas sociais em um sistema econômico tão contraditório quanto o capitalismo. É o contrário: uma sociedade capitalista precisa de indivíduos imbecis para existir e se manter. A subjetividade ordinária, em especial da burguesia, é a única possível no capitalismo e a catástrofe o único final plausível.

É por isso que Não Olhe Para Cima, apesar das boas intenções, não consegue ir além dos seus antecessores. Parece mais do mesmo. Isso explica a abordagem farsesca e irônica dos materiais apresentados e as explícitas citações, na linha do pastiche pós-moderno, a outros filmes com temas semelhantes.

Das várias citações, duas chamam atenção. Em Armagedom (Armageddon, Michael Bay, 1998), Bruce Willis é o herói que salva o planeta de um meteoro, com a ajuda da Nasa e do Pentágono, em um alinhamento com o governo impensável no atual momento. Em Não Olhe para Cima, este herói é o cretino fascista Benedict Drask (o ótimo Ron Perlan).

Em Interestelar (Interestellar, Christopher Nolan, 2014), o clima é o inimigo mortal. No entanto, o resultado é uma das obras mais fascistas já produzidas em Hollywood. O filme chega a sugerir genocídio como forma de salvar a espécie humana e transforma uma das luas de Saturno no Kansas. Mckay o ridiculariza na cena final de seu filme.

Uma das vantagens de Não Olhe para Cima em relação a seus antecessores é o fato de que, no mundo real, uma catástrofe de fato está acontecendo e ela está próxima das pessoas ricas de Hollywood. Não é preciso mais imaginar qual seria a reação da sociedade e dos governos diante do imponderável.

Como a pandemia de Covid-19 e o aquecimento global não são frutos da imaginação criativa, Mckay pode se concentrar em registrar a reação social que ele mesmo está vivendo na prática.

Neste sentido, para muitos que se identificam com sua premissa, visto que vivemos diariamente uma realidade de absurdos, o filme acaba ajudando a desopilar o fígado. “Lava a alma”, como dizem alguns. Porém, as coisas não são tão simples.

O diretor faz parte de um círculo de indivíduos em Hollywood que no Brasil caracterizaríamos de esquerda light. São os “liberals”, em inglês. Neste grupo, estão alguns atores como Leonardo DiCaprio e Meryl Streep. Inclui também Brad Pitt, de A Grande Aposta. Todos poderosos e muito ricos.

DiCaprio é um ativista político, defensor de causas ambientais e até teve entreveros com Bolsonaro há algum tempo. O problema dessa gente e de suas pretensões políticas, no entanto, é que em sua maioria eles estão alinhados com os políticos do Partido Democrata. E não há nada mais equivocado.

Ao focar seu filme no anti-Trumpismo, Mckay poupa os democratas como detentores de um bom senso que eles estão longe de ter. O partido serve à sujeira capitalista tanto quanto o Partido Republicano de Trump, mas o faz a partir de uma escatologia discursiva que usa e abusa dos termos ligados à democracia de modo a posar de civilizado.

O Partido Democrata americano é formado por capitalistas assassinos, genocidas e fazedores de guerra. Um deles atende pelo nome de Barack Obama. O Partido Democrata controla atualmente o discurso politicamente correto e é o responsável pelo atual identitarismo moralista, do qual boa parte da esquerda brasileira se apropriou com gosto. O Partido Democrata deu um golpe de estado no Brasil em 2016 como estratégia contra os BRICs e para roubar nosso petróleo.

No caso do identitarismo moralista, a escalação de Meryl Streep para viver a oportunista presidente Orlean, retratada como um Trump de saias, é um pastiche, mas de sua performance como Margareth Thatcher em A Dama de Ferro (The Iron Lady, Phyllida Lloyd, 2011). A inglesa foi a genitora da perversão neoliberal do capitalismo, mas Meryl a retrata como uma mulher de fibra.

“Todos os dias, chove pedras na cabeça dos trabalhadores”, diz um personagem de Chuva de Pedras (Raining Stones, Ken Loach, 2011), um filme que retrata como ninguém a situação da classe operária inglesa depois dos anos Thatcher (leia nossa análise aqui). Uma simples comparação entre essas duas chuvas de pedras – a farsesca de Mckay e a consciente de Loach – mostram como a adesão ao sistema está presente no primeiro.

Nunca existiu, não existe e nunca existirá capitalismo ético, democrático, humano ou qualquer bobagem usada como paliativo para um sistema econômico que apela para o horror e o grotesco cotidianamente. Centenas de milhões de pessoas sentem isso na pele há séculos.

No universo social de um cineasta como Mckay, a solução para o dilema em seu filme é interditada. Trata-se de uma escolha política. Este interdito chama-se socialismo. Algo que a esquerda light cooptada nem pensa em cogitar. Por isso, em sua fantasia, não há alternativa e seus personagens só podem morrer.

Porém, é fato histórico que seria muito mais fácil destruir o meteoro do que deixá-lo nos destruir. Para começar, seria importante parar de olhar para o futuro como distopia e começar a pensar em utopia, ou seja, imaginar que podemos superar os limites do atual sistema econômico e substituí-lo por um mais racional. Precisamos querer um final feliz. É o óbvio.

Que mal há um mundo no qual quem trabalha seja o real proprietário dos frutos do seu trabalho? Que idosos e crianças sejam assistidos e bem tratados? Que não haja fome? Que sistemas de saúde sejam acessíveis e gratuitos a todos? Que não haja divisão de classes? Que a riqueza produzida por todos não seja concentrada nas mãos de poucos?

Ou o que queremos mesmo é o final reacionário de Não Olhe para Cima? Sentar e rezar a espera de um milagre?

Streaming

Não Olhe Para Cima está no Netflix.

A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a posição deste Diário.

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