De tempos em tempos, uma nova moda intelectual monopoliza os debates nos meios da esquerda bem pensante. Às vezes derivam umas das outras, entram em polêmicas entre si, mas geralmente convivem pacificamente, enfim. Nos meios universitários tudo pode, menos o marxismo “ortodoxo”, “mecanicista” ou (como quem diz um palavrão) “proletário”. Tornou-se praxe no meio da esquerda a adoção de um politicamente correto muito peculiar, uma série de regras baseadas no que se convencionou chamar “política identitária”, ou “identitarismo”.
A política identitária se opõe pelo vértice ao marxismo. Destaco dois aspectos fundamentais. Ideologicamente, trata-se de uma filosofia idealista. O identitarismo tem como ponto de partida as opiniões, interesses e perspectivas de grupos sociais com os quais as pessoas se identificam. A base é a identidade, a ideia que uma pessoa tem de si e de seu meio, na luta contra as diversas “opressões” (de gênero, orientação sexual, religião, classe social, etnia, raça, língua, nacionalidade etc.)
Politicamente, é uma forma insossa de reformismo. A política identitária não aspira a nenhuma revolução, nenhuma forma de organização política para subverter a ordem social e acabar com as “opressões” que, é claro, existem (mas não definem o caráter geral da opressão e da exploração de uma parcela da humanidade sobre a outra). Ao invés disso, a política identitária consiste em cobrar do Estado leis mais repressivas e até mesmo a criação de leis punitivas contra os transgressores das regras morais propostas pelos identitários. Para não falar da tentativa de policiar e enquadrar o indivíduo transgressor.
A reação da burguesia e de seus vassalos (a pequena burguesia bem pensante) ao marxismo e, portanto, à revolução proletária, é conhecida de longa data. Assumiu diversas formas desde o mais importante feito histórico da classe operária, a tomada do poder na Rússia e a constituição do Estado soviético – da intervenção militar das potências imperialistas contra o nascente Estado operário, às emanações morais e teóricas de reacionários, professores e “filósofos”.
Vinte anos atrás, quando comecei meus estudos na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a polêmica de então não estava clara para o calouro que eu era. Uns dois anos depois, ouvi em sala de aula que Lênin jamais escreveu qualquer coisa de significativo em termos de filosofia e que a coisa que mais se aproximaria disso é o livro Materialismo e empiriocriticismo (1909) que, segundo o professor doutor Ricardo Terra, não valia a pena nem ser lido pois era apenas uma exposição simplória, um “materialismo vulgar” e sem relevância para o estudo “sério” da teoria das ciências humanas, que começaria com… Lukács e serpentearia pela Escola de Frankfurt e a tal Teoria Crítica.
Apresentando um seminário, noutra disciplina, quando me foi solicitado explicar o conceito de alienação em Marx, tirei uma citação d’O Capital. Pra quê?! Na Universidade só entra o “jovem Marx” (uma outra pessoa, que ia por outro caminho quando, por algum motivo obscuro, se desviou e tornou-se o mentor do proletariado mundial ao escrever o Manifesto Comunista…), e “alienação”, só se for a que ele menciona n’os Manuscritos Econômico-Filosóficos, onde o vocabulário hegeliano marca presença.
Uma pichação na porta de entrada do “prédio do meio”, que dizia “entramos marxistas revolucionários, saímos weberianos resignados”, não poderia estar mais certa quanto ao propósito do “estudo” do marxismo e das teorias das ciências humanas na Universidade. Só mais tarde, compreendendo que a Universidade é parte do aparato ideológico e político da burguesia, necessária à formação de guardiões da ordem, propagandistas do capitalismo e da ideologia burguesa, vi que não era possível esperar muito mais do que isso.
Mas foi da esquerda que recebi as lições mais importantes. Na faculdade de Filosofia, fui recebido por um veterano da então Força Socialista (uma corrente do PT que, mais tarde, se bandearia para o PSOL) e ouvi que não se pode chamar os calouros nem ninguém de “alunos”, porque essa palavra significaria “sem luz” em um latim capenga e significaria dizer que são todos ignorantes. Fantástico.
Entre o prédio do meio e a faculdade de Letras, ouvi de uma militante de uma finada corrente (seus remanescentes estão no PSOL hoje) que as ideias do partido ao qual eu me havia filiado, o PCO, eram um “materialismo mecanicista”. Em uma eleição do Centro Acadêmico, fui olhado de cima a baixo com desprezo por ter falado em luta de classes (é coisa antiga, ultrapassada).
Vinte anos depois, a Teoria Crítica, que deu razão a todos esses esquerdistas que rejeitam a luta de classes, o partido revolucionário e a teoria da revolução, continua firme e forte. Os nomes de Lúkacs, Adorno, Horkheimer, Fromm, Benjamin, Marcuse, Habermas e tantos outros continuam em pauta. Mas eles ganharam um aliado importante, o identitarismo, que assumiu a dianteira no ataque às posições marxistas e revolucionárias.
A política identitária ou ideologia identitária veio substituir os suspiros dos existencialistas, os zigue-zagues da Teoria Crítica, as determinações que nada determinam no estruturalismo e tudo que se poderia arguir com base em Gramsci, no Marxismo Ocidental etc., contra o determinismo da teoria marxista da luta de classes. Resumiu todos os argumentos e censuras contra o marxismo às acusações de machismo, racismo e homofobia. Duas categorias são suficientes para combater o mal, a injustiça e a iniquidade: raça e gênero.
Assim, ao invés de ver ideias políticas que correspondem à luta revolucionária da classe operária serem reprovadas nos meios de esquerda por serem “mecanicistas”, “antiquadas” ou “sectárias”, vi que o pensamento marxista é combatido por ser “machista”, “eurocêntrico”, “racista” etc. As pessoas passaram a ser policiadas, fiscalizadas, cobradas e combatidas pelas menores expressões de linguagem utilizadas (“mercado negro”, “denegrir”, “mulato”, “aleijado”, “prostituta” e “mãe solteira”, para citar poucos exemplos, entraram para o index identitário).
Além disso, homem não pode opinar sobre a opressão da mulher (não sem pedir licença); brancos não podem falar de índios e negros (ou pessoas de povos originários e afrodescendentes); héteros de homos, bis, trans, pans etc. Não vou mencionar a tentativa inútil de fiscalizar o vocabulário e a gramática alheias. No final das contas, é uma ideologia anticientífica, em que o ser humano não pode dizer nada sobre aquilo que ele não viveu. .
Apesar da sua pobreza de conteúdo, o identitarismo, esse mais recente inimigo ideológico do marxismo, tem as costas quentes. Sua vantagem sobre os adversários que estavam em voga até bem uns dez anos atrás é esta: tornou-se mais popular. Veio pra ficar, já que a imprensa capitalista, além de toda a cúpula universitária no ramo das ciências humanas, o adotaram como norma.
Posso dizer que vi essa transição do pensamento dominante da esquerda acontecer em tempo real nas últimas duas décadas, na Universidade e na luta política fora dela. Assim como não sinto falta da primeira modalidade de pensamento antimarxista, posso dizer com certeza que estou ansioso para que esta “novidade” anti-intelectual, tão ao gosto dos democratas norte-americanos e da rede Globo no Brasil, seja esquecida como foram todas as anteriores. Afinal, me pergunto: quão baixo o pensamento pode descer para se opor à revolução e o socialismo?