─ RBA ─ Brasil de Fato – Apesar de ser um problema nacional, agravado especialmente durante o governo Bolsonaro, no Maranhão o tema dos assassinatos no campo tem sido objeto de estudos e uma série de denúncias de órgãos e entidades, com atenção especial ao caso de quilombolas e trabalhadores sem terra, os principais alvos de grileiros e grandes empreendimentos na região.
“Marcado para morrer”. Essa foi a sentença na vida de João, de Francisco, Reginaldo, Antônio, Rosa, das duas Marias e dos dois Josés. Assim como Manoel, o líder histórico Mané, esses não são apenas nomes comuns, mas histórias. Histórias de resistência e luta pela terra e pela vida.
Os nomes correspondem aos nove assassinatos registrados em conflitos no campo no estado do Maranhão no ano de 2021, segundo dados parciais do relatório Conflitos no Campo 2021. Isso corresponde apenas ao período que vai de janeiro até o final de agosto deste ano, divulgado pelo Centro de Documentação da Comissão Pastoral da Terra (Cedoc/CPT).
O documento aponta que em todo o país foram registrados 26 assassinatos relacionados a conflitos no campo. O número correspondente a esses seis meses é 30% maior do que o todo o ano de 2020. Do total de vítimas, nove foram registradas no Maranhão, ou seja, cerca de um terço do total.
O coordenador nacional da CPT, Ronilson Costa, explica que, infelizmente, essa realidade não é recente no estado, que há cerca de dez anos ocupa o topo dos registros do número de conflitos no campo da Federação, sendo um dos mais perigosos para lideranças e pessoas engajadas na defesa de direitos à terra.
“Foi nesse período também um dos lugares mais perigosos para lideranças ou pessoas que atuam junto a essas comunidades na defesa de seus territórios. Isso porque ainda há uma prática muito forte que é a atuação da pistolagem, das milícias, agora com CNPJ, que são empresas que acham que podem atuar de qualquer forma e são extremamente violentas”, explica.
Outro agravante e mantenedor dessa realidade é o alto índice de impunidade para esse tipo de conflito. Segundo dados da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e Agricultores Familiares do Maranhão (Fetaema), nos últimos 30 anos aconteceram mais de 140 assassinatos no campo maranhense, com menos de 5% destes casos tendo solução.
A Fetaema lançou na última terça-feira (14) o livro: “Conflitos e Lutas dos Trabalhadores Rurais no Maranhão em 2020”, que além de um panorama dos conflitos agrários e socioambientais, contabiliza 79 situações de conflitos, abrangendo 165 comunidades em 33 municípios. Isso traz um quadro de 7.262 famílias localizadas em mais de 840 mil hectares de unidades de trabalhadores rurais invadidos. Entre as ocorrências de conflito foram registrados três assassinatos de trabalhadores rurais e 79 ameaças de morte.
Ronilson, da CPT, explica que os números são reflexos do modelo de desenvolvimento que prioriza os interesses de elites predatórias que destroem as riquezas naturais e o bem comum das comunidades tradicionais.
“Quando a gente prioriza um modelo de desenvolvimento pautado em práticas predatórias da mineração ou da produção de energia, que detona com os ecossistemas, que destrói as nascentes, invadem os territórios dessas comunidades, são discussões feitas para defender os interesses de uma pequena elite econômica ou política do nosso país, em detrimento de centenas de comunidades tradicionais”, denuncia.
Dos 26 casos de assassinatos registrados em conflitos no campo pela CPT, três deles tem como vítimas lideranças quilombolas. Todos registrados no estado do Maranhão.
A baixada maranhense, que agrega o maior número de comunidades quilombolas, por exemplo, têm sido alvo quase diário de casos de violências contra trabalhadores e trabalhadoras rurais. Um dos casos emblemáticos está na comunidade quilombola do território Tanque da Rodagem/São João, no município de Matões, a 450km da capital São Luís.
Após sucedidas ameaças de despejo, no mês de setembro os próprios quilombolas agiram em defesa do território e apreenderam dois tratores e um correntão usados por empresários para desmatamento do Cerrado e posterior cultivo de eucalipto.
A ação foi acompanhada da denúncia de que eles não possuíam licença para desmatar a área, reivindicada pelos quilombolas em processo de titulação junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2013. No entanto, constava na Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) uma licença favorável em defesa dos empresários.
Envoltas em mistérios e denúncias de irregularidades, no dia 10 de dezembro o juiz Douglas de Melo Martins, titular da Vara de Interesses Difusos e Coletivos de São Luís, determinou a suspensão de todas as licenças ambientais que não tenham sido precedidas de consulta aos povos tradicionais afetados no Maranhão. A Justiça também determinou que nos próximos licenciamentos, as comunidades sejam consultadas previamente.
As comunidades quilombolas apontam que, além das questionáveis licenças ambientais concedidas pelo estado, a falta e a demora na titulação de suas terras tradicionais favorecem empresários, grileiros e latifundiários, que pressionam as suas condições de vida, degradam o meio ambiente e assassinam as suas lideranças.
É o que explica o quilombola João da Cruz, articulador do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom).
“Titulando as nossas terras, os nossos quilombos, dificilmente teremos esses conflitos. Todos os dias você ouve falar de quilombolas sendo mortos e conflitos em todos os cantos. E não falo só pelos quilombos, mas também pelo territórios indígenas. Para nós é tão importante a titulação porque é disso que a gente depende para viver.”
De acordo com dados da Fundação Cultural Palmares, órgão do governo federal responsável pela certificação da autodefinição das comunidades quilombolas, até o momento foram identificadas no Maranhão 843 comunidades autodeclaradas, sendo 590 com a garantia de certificação da Fundação.
Informações do Instituto de Colonização e Terras do Estado do Maranhão (Iterma) apontam que somente 68 teriam a titulação definitiva, sendo 65 por meio do próprio Iterma e 3 pelo Incra.
Em meio aos altos índices de conflitos, o estado tem sido pressionado por órgãos, movimentos populares e as próprias comunidades tradicionais. O discurso é unânime no sentido de que todos os esforços têm sido feitos no sentido de proteção e defesa da vida no contexto das ações do atual governo.
É o que aponta o Secretário de Direitos Humanos e Participação Popular, Francisco Gonçalves, que garante que os dados são reflexo de um avanço nacional do agronegócio e do garimpo ilegal, inflamado especialmente sob o discurso de ódio do presidente da república.
“O governo do estado do Maranhão vem adotando providências em diversas áreas. Desde 2015, com a ampliação da Comissão Estadual da Prevenção à Violência no Campo e na Cidade, a Coecv, mais de 700 casos de conflitos foram mediados e encaminhados para os órgãos responsáveis. Vale lembrar que antes da Coecv, não havia qualquer estratégia estadual para tratar conflitos agrários no Maranhão, como também não havia definição sobre o papel da polícia militar frente a tais conflitos”, explica Gonçalves.