Desde 2018, após tremores na terra no começo do ano, começou a vir à tona uma tragédia sem precedentes em, pelo menos, cinco bairros de Maceió. Foi o início do afundamento de parte da cidade, colocando em risco a vida de mais de 60 mil pessoas devido à extração de sal-gema realizada no subsolo da capital alagoana.
Como no início de 2019 o Brasil testemunhava o desenrolar do maior acidente de trabalho do país em Brumadinho, o “caso de Alagoas”, como foi chamado inicialmente, se agravava silenciosamente, com potencial para causar pelo menos 10 vezes mais mortes que o rompimento da barragem em Brumadinho, que deixou 270 pessoas atingidas, dos quais 259 mortos e 11 desaparecidos.
No final de 2019, foi firmado um acordo entre ministérios públicos, defensorias públicas e a Braskem, que definiu de vez a responsabilidade da mineradora em relação às famílias desalojadas pela maior tragédia socioambiental em curso no mundo. Os moradores e trabalhadores atingidos, no entanto, não participaram dos processos decisórios.
Após quase dois anos dos compromissos assumidos, mais de 70% das vítimas ainda não foram indenizadas, e os valores propostos pela multinacional controlada pela Odebrecht chegam a representar, em alguns casos, apenas 1% do valor justo.
Se, de um lado, a maioria das vítimas se encontram numa situação de miséria, com uma área geograficamente afetada que apenas se alarga; de outro, a empresa bilionária segue impune e suas ações na bolsa de valores de Nova Iorque continuam em ascensão.
Com o abafamento do caso pela imprensa burguesa e conversando com familiares, amigos e conhecidos afetados pelo desastre, resolvi fazer uma pesquisa e entrevista com um amigo que tem participação ativa no movimento dos moradores do bairros atingidos e que preferiu não ser identificado pela perseguição feita pela própria Braskem a quem tenta mexer onde não devia.
Quando começou a exploração da Braskem na cidade? Em 1941, o Conselho Nacional do Petróleo contratou uma empresa para perfurar o solo nas imediações da Lagoa Mundaú, em Maceió. Embora a busca fosse por petróleo, logo foram encontrados 80 m² de sal-gema. Mas, por algum motivo, durante cerca de duas décadas, um grupo internacional permaneceu com uma concessão de exploração inutilizada. Então, só a partir de 1965, estudos mais amplos da Petrobras revelaram uma quantidade superior a 20 bilhões de toneladas do minério na capital, mas a exploração efetiva se deu apenas entre 1976 e 1979, período da implantação até o pleno início das atividades da Salgema Indústrias Químicas S.A entre o mar e a lagoa Manguaba. Sob o controle da estatal, havia a Petrobras, que detinha 55% das ações, e a empresa norte-americana Dupont, com 45%.
Durante o governo Geisel, a indústria de sal-gema foi divulgada como instrumento do progresso econômico em Alagoas, parte de uma campanha pró-regime militar. Acontece que, assim como ficou comprovado a partir da nota técnica da Defesa Civil após a morte de um operário da Salgema em 1976, a instalação do complexo cloroquímico entre bairros tão populosos como Pontal da Barra e Trapiche da Barra (um dos primeiros da capital) sempre foi grotesca. A explosão do reservatório de salmoura que matou o trabalhador era um exemplo dentre os inúmeros perigos oferecidos pela atividade naquela área. Segundo a Defesa Civil, um acidente na produção de cloro e soda também poderia levar à formação de uma nuvem densa e tóxica, capaz de percorrer a cidade e ameaçar a vida das pessoas próximas ao pólo industrial.
Como a população reagiu à instalação da mineração em seus bairros? Antes do início das obras, a própria população já se opunha à instalação da Salgema, fazendo mobilizações contra a autorização do governo Geisel. Por isso, em dezembro, Divaldo Suruagy, governador do estado e figura política do partido da ditadura, o Arena, logo improvisou uma “coordenação de controle da poluição” — é claro, como artifício para sustentar a demagogia de que Alagoas seria um “estado ecológico” e aliviar as tensões políticas. Mesmo que não houvesse verba para a pasta, o biólogo José Geraldo Marques aceitou assumi-la e conseguiu montar uma equipe. No entanto, quando Marques se opôs à instalação da indústria da maneira como se tinha proposto, foi perseguido pela imprensa e escorraçado de Alagoas com uma arma pelo secretário de planejamento do estado.
Quais foram as consequências imediatas desta operação? Nos cinco primeiros anos de operação, se tem notícia de seis acidentes com cerca de cem vítimas, entre explosões de reatores e vazamentos de cloro. Isso gerou certa indignação em alguns movimentos ecológicos, o que acabou por impulsionar não mais que a emissão de um ofício na Câmara dos Deputados, solicitando inutilmente ao governo Figueiredo a realocação da indústria cloroquímica. No entanto, a essa altura, o regime militar já tinha o controle total da empresa. Mais especificamente, estava sob os olhos do ex-presidente Geisel, um grande entusiasta da Salgema que comandava a Copene e a Norquisa, cuja participação na indústria de cloro-soda em Alagoas era de praticamente 70% (os outros 30% eram da Petrobras).
Após o anúncio de 1985 sobre a duplicação da capacidade operacional de 220 para 440 mil toneladas de cloro por ano, dois estudantes de jornalismo da Ufal, Érico Abreu e Mário Lima, publicaram uma reportagem investigativa que apontava os perigos do pólo cloroquímico — dentre eles, já estava o risco de afundamento do solo. Devido à repercussão, o sindicato dos jornalistas do estado junto a organizações estudantis, acadêmicas e secundaristas, e alguns movimentos ecológicos, como a ONG Movimento Pela Vida, realizaram uma série de mobilizações contra a ampliação da indústria naquela região, mas a população diretamente atingida não foi mobilizada e era comum que as reivindicações girassem em torno de “salvar a natureza”.
Quem foram os maiores atingidos então? A comunidade mais prejudicada era a do Pontal da Barra, às margens da lagoa Manguaba, onde se fundou, há 225 anos, uma vila de pescadores que, desde sempre, é duramente reprimida pela polícia. Evidentemente, o regime militar e seus adeptos nada fizeram para salvar essa população. Por questões eleitoreiras, Divaldo Suruagy, governador do estado pela segunda vez, até ameaçou a criação de um plebiscito para decidir sobre a duplicação, mas postergou por meses e terminou anunciando sua decisão favorável em dezembro (embora a imprensa o pressionasse pela rápida aprovação). O período seguinte foi de total descontrole, a partir da perfuração de novos poços muito próximos uns dos outros e com o dobro do tamanho recomendado.
E quando a Odebrecht assumiu a extração? Em 1995, através dos leilões de desestatização iniciados na época do governo Collor, a Salgema foi uma das primeiras empresas estatais entre as 80 que foram entregues por Fernando Henrique Cardoso à privatização, passando a se chamar Trikem, essencialmente sob domínio da Odebrecht. Foi quando Suruagy, no início de seu terceiro mandato como governador, concedeu isenção de ICMS à empresa. Nessa época, já haviam sido registrados, somente na década de 90, 23 acidentes, entre mortes e contaminações do lençol freático. Dentre eles, um de 150 toneladas de dicloroetano no Pontal da Barra. Acontecia que nunca haviam sido feitos investimentos realmente sérios em prevenção, manutenção e fiscalização. O Serviço Geológico do Brasil, então, iniciou um monitoramento do solo que permaneceu sob sigilo por 24 anos, até que uma técnica da CPRM revelou, numa audiência pública, que existem indícios de deformação do solo e de sismos na lagoa desde 1995.
Em 1997, ocorreu mais um grande acidente, quando uma imensa nuvem de cloro tomou conta do Pontal da Barra. A Braskem só veio a surgir cinco anos mais tarde, a partir da fusão da Trikem com outras seis empresas adquiridas pela Odebrecht, que passou a monopolizar o ramo no país. Assim, a produção foi novamente intensificada, com a perfuração de novos poços, que passaram a totalizar 39 ao longo da capital. O próximo desastre veio em maio de 2011, quando ocorreu um enorme vazamento de gás, provocando outra nuvem tóxica que atingiu 152 pessoas, seguido de uma explosão da qual cinco trabalhadores saíram feridos. Nessa época, o jornalista Roberto Vilanova publicou uma matéria em que alertava para os perigos além das explosões e dos vazamentos: o afundamento de determinados bairros. Hoje, a Braskem é uma empresa de capital aberto que continua sendo controlada majoritariamente pela Odebrecht (hoje, Novonor), enquanto a participação da Petrobras é de 47%.
Esta é a primeira parte de uma extensa entrevista nesta coluna revelando a história do maior desastre ambiental atualmente em curso no mundo, que já afetou mais de 60 mil moradores de Maceió. A capital alagoana atualmente se encontra parcialmente destruída, num cenário apocalíptico. Em cinco bairros da cidade, a economia está totalmente disfuncional, milhares de pequenos empresários foram à falência, enquanto ainda mais gente ficou desalojada. O governo de Alagoas e a prefeitura maceioense, diante da catástrofe, nada fizeram, e ainda nada fazem, para socorrer os afetados. Mas a situação ainda pode piorar…