Tive o prazer de ver, pela internet, um trecho de apresentação realizada pela Camerata Romeu – uma orquestra cubana de mulheres -, no Teatro Nacional de Cuba. Esse grupo musical, só com instrumentos de cordas (violinos, violas, violoncelos e contrabaixo), é formado integralmente por mulheres, incluindo o lugar da regência. Segundo a regente, Zenaida Romeu, a orquestra foi criada por ela, em 1993, como uma forma de mostrar o espaço conquistado pelas mulheres em Cuba. E isso a Camerata vem realizando com sucesso.
Quem aprecia a música de concerto no Brasil, sabe o quanto é pouca a presença feminina nesse espaço. Nas nossas orquestras, as mulheres ocupam, em geral, de um quarto a um terço das vagas de músicos instrumentistas nos nossos cada vez mais raros grupos sinfônicos.
Sabemos que, no meio profissional da música de concerto, a discriminação com as mulheres trabalhadoras vai bem além do ingresso nas orquestras. As mulheres que conseguem ingressar nesse ambiente, geralmente ocupam lugares sem poder de decisão e com os menores salários. Há um tipo de segregação que a pesquisadora francesa Hyacinthe Ravet denomina “vertical”, baseada na hierarquia interna das orquestras. A mulher é alijada daqueles que são considerados os lugares principais, de poder, de decisão, de projeção e de maiores salários no trabalho orquestral. Esses seguem predominantemente ocupados por homens. Por essa razão, se as mulheres instrumentistas de orquestra são poucas, raramente alcançam o lugar de solista ou “principal” no seu instrumento. Mais raras ainda são as mulheres nos postos de regente orquestral.
Esse quadro não é exclusivo do Brasil. Na Europa, orquestras das mais conceituadas, como as Filarmônicas de Berlim e de Viena, só passaram a aceitar mulheres nos seus quadros a partir das décadas de 1980 ou 1990. Daí vemos como é recente o ingresso de mulheres nesse ambiente.
Não vou me alongar em questões técnicas. Gostaria de destacar que, no Brasil, outras questões estruturais interferem nessa situação das nossas orquestras. Não é possível tratarmos da situação profissional de mulheres sem que se considere também os aspectos de classe e de raça. O acesso ao estudo de um instrumento de orquestra segue sendo algo acessível a poucos. Com isso, os lugares com melhores salários se mantêm ocupados não apenas por homens, mas brancos, vindos das camadas mais abastadas da sociedade, cujas famílias conseguem, em muitos casos, enviá-los a outros países para anos de aperfeiçoamento nos estudos musicais. A exclusão, portanto, não é apenas de gênero. Acrescente-se aí as questões étnicas e de classe, que aliás nunca devem ser separadas no entendimento das lutas das mulheres na nossa sociedade. Em trabalho realizado pela estudiosa Liliana Segnini, com músicos de orquestras brasileiros, a autora narra que, em dez anos de pesquisa, se encontrou uma minoria de mulheres nas orquestras por ela analisadas, nunca encontrou um único músico sequer, homem ou mulher, que se declarasse negro. No contexto socioeconômico brasileiro, sabemos a exclusão que se encontra aí embutida.
Em Cuba, apesar dos problemas ainda existentes, o contexto é outro. Depois da Revolução de 1959, Cuba conseguiu uma educação verdadeiramente democrática. No que diz respeito às artes, foi fundado, em 1973, o Instituto Superior de Arte (ISA), em Havana, dedicado à formação acadêmica nas áreas artísticas. As mudanças políticas de Cuba permitiram, desde o princípio, um acesso mais igualitário à formação musical. Se no início, as mulheres ainda eram minoria, de lá para cá, elas vêm ocupando cada vez mais espaço na área da atuação profissional em música. Algumas áreas do trabalho na música se tornaram predominantemente femininas, como a musicologia e a regência.
Nas orquestras, a cena que se vê em Cuba é de cada vez maior participação feminina entre os integrantes dos grupos sinfônicos. Há alguns deles que são majoritariamente compostos por mulheres. O progresso é imenso e muito à frente do quadro existente nos países capitalistas, em geral, para não falar do Brasil, cuja a diferença é abismal.
Para não dizerem que não aponto problemas de Cuba quero dizer que a “segregação vertical” em relação às mulheres nas orquestras não foi suplantada por lá. Ainda há um número bem maior de homens naquelas que são consideradas as orquestras de maior relevância no país. Isso é um traço que se constata também no Brasil e em outros países: quanto maior a importância da orquestra e a repercussão do seu trabalho, menor a quantidade de mulheres no grupo. Quanto mais periférica a orquestra, maior é o percentual de mulheres.
O que se contrapõe, no caso cubano, a essa permanência da “segregação vertical” das mulheres no trabalho orquestral é a situação da regência. Zenaida romeu, pertence à primeira geração de regentes formados pela ISA e tem uma sólida carreira. Seu lugar à frente da Camerata Romeu é um símbolo do quanto as mulheres cubanas estão conseguindo se projetar nessa atividade. Na Cuba atual, as mulheres são maioria na regência, lugar máximo na hierarquia orquestral e tradicionalmente visto como símbolo de poder e associado ao masculino. Nessa função, o quadro das cubanas subverteu o que se vê, habitualmente, pelo mundo, com os homens representando quase a totalidade dos regentes orquestrais.
Nesses vinte e oito anos de existência, a Camerata Romeu conseguiu se impor pela qualidade musical do seu trabalho. Ganhou um lugar de referência na música de concerto cubana, não apenas como orquestra, mas também por ter se tornado um êmulo aos compositores para que produzam novas peças para a tradicional formação da orquestra de cordas. A conquista das cubanas na música deixa transparecer que as mudanças, quanto ao espaço ocupados pelas mulheres, só podem ser alcançadas com transformações estruturais na sociedade, como as trazidas pela Revolução de 1959. A constatação é fácil. Existem muito mais grupos sinfônicos regidos por mulheres em Cuba do que no Brasil, apesar da diferença incomparável no tamanho dos dois países, quanto ao território e quanto à população. A Orquestra Brasileira de Mulheres surgiu apenas em 2019, portanto, ainda engatinha no cenário da música de concerto nacional. Há uma orquestra de mulheres no Espírito Santo, criada apenas em 2020, mas as mulheres que tocam no grupo, ainda que profissionais, não recebem nenhum pagamento por esse trabalho. Sobre a regência, deixo apenas uma pergunta: quantas vezes você já viu uma mulher regendo uma orquestra por aqui?
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