Nesta semana, o jurista e filósofo Silvio Almeida utilizou as redes sociais para anunciar que iria integrar o Comitê Externo de Diversidade e Inclusão proposto pela rede de supermercados Carrefour. Autointulado marxista, Almeida foi alvo de justas críticas por se associar aos capitalistas, os maiores inimigos dos trabalhadores e dos explorados em geral.
Às críticas, Silvio Almeida respondeu da seguinte maneira:
“Após muito refletir e conversar com pessoas próximas concluí que deveria lutar para que a família obtivesse a adequada indenização, mas também que fosse oferecida à comunidade negra uma resposta eficiente, que venha a se tornar um modelo”.
Embora nenhuma reparação total seja possível — pois nada trará de volta João Alberto para sua família —, a única reparação que o Carrefour poderia fazer é o pagamento de uma indenização para seus familiares. E para isso, não é necessária um “comitê”: basta o Carrefour pagar o que deve à família de João Alberto.
O objetivo do comitê é puramente político. O que o Carrefour está propondo, no final das contas, é formar uma equipe para tornar a rede de supermercados e o seu aparato de repressão “consciente” em relação ao racismo. É um circo. O comitê é uma operação para limpar a imagem da marca Carrefour.
O leitor deveria ponderar, o que Silvio Almeida fará com o Carrefour? Explicará aos seus seguranças que não podem espancar os negros até a morte? Dará treinamento a estes? Precisa de treinamento para saber que não se pode espancar um indefeso até a morte? O segurança tem um trabalho simples, uma função, ameaçar e reprimir a população pobre e negra e garantir a propriedade do Carrefour.
Até mesmo a Coalizão Negra por Direitos, que é um agrupamento bastante pequeno-burguês, e com uma política de tipo identitária, repudiou a formação do tal comitê. Corretamente, a coalizão caracterizou o comitê como uma tentativa de se conciliar com o Carrefour e propôs uma campanha pela cassação de seu alvará de funcionamento. Cassar o alvará de funcionamento do Carrefour pode não ser a política mais precisa para desenvolver a luta do negro no Brasil, mas a política de que “não há mediação com quem nos mata”, elaborada pela coalizão, é absolutamente acertada.
A participação dos negros no comitê antirracista do Carrefour é o mesmo que admitir que a solução para o racismo no Brasil passaria por um acordo com os racistas. O que é absurdo.
Os setores que levam adiante esse tipo de política têm uma consideração de que o problema do racismo, bem como o problema da opressão da mulher, seria um problema “cultural”. Ou seja, por algum motivo abstrato, que ninguém saberia explicar, a “sociedade” teria sido educada para hostilizar os negros e as mulheres. E, sendo assim, a solução para combater esse tipo de opressão estaria em uma reeducação da sociedade.
Essa tese absurda ignora, por exemplo, que os problemas dos negros sempre estiveram ligados a problemas econômicos — a escravidão negra é a maior prova disso. E, por outro lado, na medida em que esses setores se negam a combater o problema em sua raiz — isto é, na luta de classes —, acabam se tornando um ventríloquo do imperialismo. Toda a demagogia identitária de que a solução para o negro seria educar a sociedade para tolerá-lo levou ao poder o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, Barack Obama. Mas a quantidade de negros que foram massacrados pelo sistema penal e pelo aparato e repressão do governo Obama é muito superior a de milhares de governos brancos pelo mundo.
A “consciência” antirracista, portanto, é apenas a “consciência” de que os interesses mais podres da burguesia devem ser defendidos. Trata-se, portanto, do contrário de qualquer tipo de consciência: é uma forma de demagogia, extremamente despolitizada, para dispersar um enfrentamento real.
Como todo tipo de operação identitária promovida pela burguesia, o comitê antirracista do Carrefour é uma completa fraude. Seu objetivo é justamente o de ocultar a política podre e racista do Carrefour. O assassinato de João Alberto, embora chocante, não é surpresa para ninguém. A Polícia Militar é a maior organização fascista do País, porque é uma polícia de classe. Serve para defender, por meio da mais extrema violência, os interesses da burguesia. Se assim é com a PM, que supostamente defenderia os “cidadãos”, muito pior vai ser com a segurança privada, que é paga explicitamente para defender, por meio da violência, a propriedade privada.
Não só que a polícia e o aparato de segurança privado é uma máquina monstruosa é um fato conhecido amplamente, como essa realidade já deu lugar a todo um movimento político. Os Estados Unidos entraram em uma onda de vários e vários protestos contra a polícia, protestos esses que levaram a um enfrentamento com a polícia. A solução para o racismo está mais do que dada: o movimento negro deve se organizar para arrancar, da burguesia, os seus direitos.
Neste sentido, a participação na fraude elaborada pelo Carrefour não só está em total desacordo com uma concepção teórica sobre a luta do negro, como vai claramente de encontro à própria experiência recente dos negros. Propor um acordo com os patrões é, nesse momento, uma política abertamente reacionária, pois procura nivelar as expectativas do movimento negro por baixo: essa é a política dos setores mais atrasados do movimento negro, e não da vanguarda, que deveria ser a política daqueles que se apresentam como marxistas e pensadores da luta do negro. E, nesse caso, setores tão atrasados, mais tão atrasados, que estão em desacordo com a política nacional e a política internacional do movimento negro.
Durante o auge dos protestos nos Estados Unidos pelo fim da polícia, quando a população estava tocando fogo nas delegacias, os setores mais confusionistas e pequeno-burgueses levantaram a palavra de “mantenham o regime, derrubem as estátuas”. Podemos, comparativamente, dizer o mesmo neste caso. Enquanto a população saiu às ruas para depredar o Carrefour, Silvio Almeida clama: “mantenham o supermercado para que possamos nos ajoelhar diante de seus patrões e pedir algumas migalhas”.
A declaração de Silvio Almeida, portanto, consiste em uma inversão total da realidade. Participar do comitê não irá aprofundar a reparação do Carrefour quanto ao racismo. Isto é, o que está em jogo não é indenizar a família de João Alberto e conquistar novos direitos, mas justamente o contrário. A formação do comitê servirá justamente para dar um “cala-a-boca” para o movimento negro: “não protestem, não reclamem, pois já estamos trabalhando para atender as suas demandas”. E, nessa enrolação, não irão indenizar ninguém, nem mudar absolutamente nada de sua política genocida e criminosa.
Aos militantes sinceros do movimento negro, não cabe esperar nada do Carrefour. É preciso organizar a autodefesa dos negros, com direito ao armamento, dissolver a Polícia Militar, e derrubar o governo Bolsonaro e o regime político golpista.