No início deste mês, um confronto entre soldados indianos e chineses chamou a atenção da imprensa especializada em conflitos geopolíticos pela gravidade do problema. As informações ainda sejam muito obscuras, principalmente a respeito do modo como se deu o confronto (não uma troca de tiros, mas uma briga literalmente com paus e pedras) e seu resultado (20 soldados indianos mortos e 40 chineses – segundo Nova Delhi, mas nenhum chinês segundo Pequim). Apesar de ter sido relativamente curto e pequeno, o conflito acirrou os ânimos militares dos dois lados.
Tanto a China como a Índia reforçaram militarmente seu respectivo lado na fronteira do vale de Galwan, em Ladaque, no Himalaia. Trata-se de uma região em disputa, a Caxemira, cujos territórios são reivindicados pelos dois países e também pelo Paquistão.
Mas o que teria levado a uma escalada tão repentina na tensão entre as duas nações mais populosas do planeta?
É importante lembrar que isso não vem de hoje. Em 1962 houve uma guerra que durou um mês na mesma região e pelos mesmos objetivos territoriais, na qual morreram pelo menos 2 mil soldados. Naquela ocasião, havia interesses externos por trás da guerra. Índia e China haviam passado por revoluções havia pouco tempo (a Índia em 1947 e a China em 1949), o que levou a uma mudança qualitativa no jogo geopolítico da Ásia, enfraquecendo o imperialismo de uma maneira extremamente preocupante.
Embora a Índia não tenha conseguido seguir o mesmo caminho socialista da China, o regime surgido da revolução de independência gerou um regime nacionalista burguês que, entre outras coisas, foi um dos responsáveis pela criação do Movimento dos Países Não-Alinhados. Nova Delhi havia se distanciado, em certa medida, do domínio que sofrera do imperialismo britânico, mas também norte-americano, enquanto era uma colônia.
No entanto, a burguesia indiana – que esmagara com o auxílio do imperialismo o movimento comunista que foi fundamental para a independência do país – não viu com os melhores olhos um vizinho gigantesco como a China, que poderia influenciar as massas indianas para uma nova revolução e que estava prestes a se tornar uma potência nuclear.
Assim, Jawaharlal Nehru, discípulo político de Gandhi, tentando manter, por um lado, a independência do imperialismo, se aproximou da União Soviética, que, naquele momento, já havia desembocado para um regime de total conciliação com o imperialismo (a política khruschoviana de “coexistência pacífica”) e que, por isso, era contrária à política ainda revolucionária da burocracia chinesa. Por outro lado, essa independência de Nehru em relação ao imperialismo era relativa e extremamente débil, como é a regra da política nacionalista burguesa dos países atrasados.
Isso levou a Índia a ser uma ameaça à China, que sofria uma sabotagem e um perigo constantes em quase todos os flancos fronteiriços: no noroeste e no nordeste com a URSS, no sul com a Indochina em guerra, no sudoeste com a Índia, além das ameaças marítimas em sua costa, no leste, por parte do Japão, de Taiwan e da marinha norte-americana.
Era uma pressão enorme sobre o Estado Operário chinês, claramente promovida pelo imperialismo, de maneira indireta.
Desta vez, em 2020, a situação é diferente, mas nem tanto. Já não se trata de sufocar uma revolução, mas sim de sabotar um competidor. A China tem sofrido uma guerra comercial por parte de Washington, um boicote de seus produtos e empresas (incluindo perseguições judiciais como no caso da Huawei) nos EUA e em seus satélites como o Canadá e o Brasil, além de uma guerra ideológica e de propaganda, que inclui as acusações de ter fabricado de maneira intencional o coronavírus e o espalhado para todo o planeta a fim de se beneficiar e também a respeito da possessão chinesa de Hong Kong. Essa guerra de propaganda é feita de uma maneira bastante suja pelo imperialismo, acusando o país de fazer justamente o que os EUA sempre fazem.
Basta ler o New York Times para perceber. Um artigo nesse jornal diz que “o exército chinês provoca seus vizinhos”, pressionando do Himalaia ao Mar do Sul da China “agressivamente” por exigências territoriais, jogando a culpa em Pequim caso haja novos confrontos com vítimas fatais.
Tal propaganda abre espaço para o imperialismo intervir, a fim de “proteger” seus aliados na região das investidas “expansionistas” dos chineses.
Bhim Bhurtel lembra, no Asia Times, que o ministro de Relações Exteriores do governo indiano, Subrahmanyam Jaishankar, é um “crente ardente” de que uma aliança com os Estados Unidos é o melhor meio de garantir os interesses estratégicos da Índia. Ou seja, um funcionário do imperialismo no regime de extrema-direita de Narendra Modi.
A marinha norte-americana enviou navios de guerra para o Mar do Sul da China e o apoio econômico e militar dos EUA a Taiwan tem aumentado. Além disso, a escalada nas tensões entre Coreia do Norte e Coreia do Sul serve, como sempre, de desculpa para manter sua presença militar na Península Coreana e realizar exercícios com o exército sul-coreano, que não são apenas uma ameaça de invasão à Coreia do Norte, mas uma demonstração de poderio bélico para Pequim.
O conflito indo-chinês, em si, já tem mostrado alguns resultados: as autoridades indianas já declaram um resfriamento em todas as relações com o vizinho, como declarou ao Financial Times um alto funcionário do governo Modi: “em termos de opções geopolíticas, opções econômicas, a Índia buscará em outro lado.”
Os conselheiros geopolíticos norte-americanos que falam publicamente sobre o tema orientam o governo Trump a aproveitar a situação de conflito para aumentar sua influência na Índia, seja política, econômica ou militar. Afinal, os indianos precisam de uma mão amiga que possam confiar para se protegerem dos “agressivos” chineses. “Enquanto o racha nas relações sino-americanas cresce, os EUA deveriam caminhar para um maior engajamento com a Índia em um esforço para reforçar o país como um bastião geopolítico contra a hegemonia regional crescente da China”, escreve o The Hill.
A China sabe que o imperialismo norte-americano está por trás das tensões na região e sempre denuncia o envolvimento militar dos Estados Unidos em países com os quais tem reivindicações territoriais. Conforme a crise imperialista se agrava, as grandes potências capitalistas precisam agir de maneira mais truculenta para espoliar as outras nações, e certamente a China é um alvo na mira. Não fosse seu grande poderio militar e seu relativo poder econômico, poderia já ter sucumbido. Mas os chineses percebem que a situação tende a se agravar e por isso também endurecem seu regime, preparando-se para o aumento da crise, como ficou demonstrado pela nova ortodoxia política (não econômica) da burocracia chinesa, que modificou a constituição em 2018 a fim de manter o grupo do presidente Xi Jinping na liderança do país.