Na tarde de ontem (5), o centro de Recife voltou a viver sua tradição de atos de rua. A manifestação em memória do menino Miguel e contra o genocídio do povo negro, marcada para 13h, foi a primeira a reunir mais de uma centena de pessoas desde o início da pandemia de coronavírus.
O caso do menino Miguel alcançou repercussão nacional no dia 4 de junho e foi corretamente interpretado pelo movimento como mais um caso de racismo, um caso que conserva relações com o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, e que engatilhou uma explosão social generalizada. Filho de uma empregada doméstica, Miguel morreu porque a patroa de sua mãe, que deveria estar observando o garoto, não viu quando ele entrou no elevador sozinho e acabou caindo do nono andar de um prédio.
O caso, em si, já causaria bastante comoção, visto que foi o filho de uma empregada doméstica que morreu tão somente porque ela estava sendo obrigada a trabalhar durante a pandemia. Mas há muito mais por trás dessa história. A patroa da mãe de Miguel é a esposa do atual prefeito de Tamandaré, cidade do litoral sul de Pernambuco, e mora em um dos edifícios que melhor simbolizam o luxo da burguesia pernambucana: as “torres gêmeas”, que serviram de inspiração para o filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho. Um prédio que já era alvo do ódio do povo pernambucano porque escancarava a desigualdade social da capital.
Além disso, a situação é especialmente comovente porque a situação das empregadas domésticas na pandemia de coronavírus é extremamente dramática. Não são poucos os casos em que as empregadas domésticas contraíram coronavírus por causa de seus patrões. E também não foram poucos os casos em que essas empregadas morreram por não ter plano de saúde, enquanto seus patrões permaneceram vivos. Cabe lembrar, inclusive, que esse não é um serviço essencial, mas as empregadas continuam em serviço porque o Estado não tem qualquer política para amparar esse setor da população: se não se submeter aos desmandos das madames, essas trabalhadoras morrerão de fome.
E foi exatamente por isso que o garoto Miguel morreu. A mãe, sendo obrigada a trabalhar, e também não tendo creche para deixar o filho, teve de levá-lo ao apartamento de sua patroa. No entanto, quando precisou sair para passear com o cachorro da família a qual servia, sua patroa ficou encarregada de cuidar de Miguel. Mas não cuidou: preferiu ficar pintando as unhas enquanto a criança morria por sua negligência. Como cantaram os manifestantes de ontem, “não foi acidente, foi crime”.
É por tudo isso que a morte do menino Miguel representa que o caso serviu para quebrar a paralisia total ao qual a esquerda pernambucana estava imersa. Ainda que timidamente, o movimento negro e alguns outros setores da esquerda decidiram convocar um ato de protesto contra a morte do menino Miguel. O ato, por sua vez, expressou toda essa revolta acumulada: verdade é que poucos ali conheciam Miguel ou seus familiares, mas todos sentiram que a morte do garoto era parte de algo muito maior: era o resultado da luta política em curso. O ato de ontem foi, portanto, não apenas um ato de protesto contra a morte trágica de um garoto, mas a expressão de uma tendência muito forte do povo sair às ruas contra a política assassina, racista, genocida e fascista da burguesia, que colocou no poder um representante da extrema-direita, o golpista Jair Bolsonaro.
Embora o ato tenha sido organizado e convocado pela esquerda, também contou com uma adesão de setores mais proletários quando este alcançou seu final: as “torres gêmeas”. Moradores de rua e jovens do centro do Recife aderiram ao ato e foi aí que a manifestação se tornou mais radical, expressando a tendência à radicalização que se viu nos atos em São Paulo e no Paraná. Esses setores compreenderam de maneira ainda mais clara a luta de classes e gritaram em bom som o que seria a “justiça para Miguel”: invadir o prédio e arrancar a assassina de de lá.