A crise econômica desenvolve-se em largos passos no Brasil. Depois do golpe de Estado de 2016, os governos golpistas implementaram uma política de terra arrasada que levou a recessão econômica e o aumento das desigualdades sociais. A pandemia da Covid-19 provocou um aprofundamento da crise, com queda do PIB em 9,7% no último trimestre, com taxas de desocupação 14,3 %, segundo o IBGE.
Em apenas cinco anos, aumentou concretamente a fome e a miséria, não se trata de mero jargão discursivo, mas de uma triste realidade, com o aumento de cerca de 3 milhões de pessoas sem acesso regular à alimentação básica, chegando a 10,3 milhões o número de pessoas nesta situação, também segundo dados oficiais fornecidos pelo IBGE.
Se não bastasse esse cenário de desmantelamento das condições de vida, o povo vem sofrendo com o aumento do custo de vida, com a carestia. A carestia é o aumento dos preços das mercadorias de uma forma contínua e acima dos rendimentos dos trabalhadores. A explosão de preços, sobretudo nas mercadorias da cesta básica, como exemplo do arroz, indica o caráter perverso da política econômica dos golpistas, em especial do governo Bolsonaro.
Essa política deliberada de matar o povo de fome não é uma novidade, inclusive em diversas ocasiões os governos dos patrões permitiram que os mais penalizados fossem justamente os que arcaram com a crise econômica.
A carestia e a inflação não são simplesmente indicadores econômicos, mas são, sobretudo, uma política de transferência acentuada de renda dos mais pobres para os mais ricos, e para grupo de especuladores e espertalhões que aumentam seus rendimentos com a deterioração das condições de vida da população.
O aumento do custo de vida indica um aumento, às vezes a um nível insuportável, do repasse da crise para as camadas médias e para os pobres em geral. A carestia tem um efeito colateral para os capitalistas, o aumento da instabilidade social e estimula a contestação política que pode se dá de maneira organizada ou mesmo através de abruptas explosões populares, como saques e outras ações.
Quando até mesmo os tradicionais colchões sociais de contenção ou de controle, bem como as diversas políticas compensatórias do tipo social-democrata ou assistencialistas, são reduzidos ou mesmo abandonados, revoltas, manifestações e até mesmo revoluções entram na ordem do dia.
Neste sentido, a carestia informa uma ofensiva dos governos e patrões contra o povo e os trabalhadores, mas, contraditoriamente, revela a falência dos regimes políticos, uma vez que a classe dominante não consegue nem mesmo alimentar seus escravos.
Fome e motins na história
Historicamente, guerras, más colheitas, transformações econômicas, entre outras coisas, levaram ao aumento do custo de vida e ao desabastecimento, provocando fome e desespero social. A carestia social é um sinal que a dominação política encontra-se em instabilidade. Assim, revoltas políticas com explosão de cóleras populares ou motins aconteceram em diversos momentos históricos.
Na época da decadência do Império Romano, o descontentamento e as revoltas, com diversas ações dos escravos e da plebe no campo e nas cidades, foram permanentes. A luta de classes entre patrícios, plebeus, escravos, comerciantes e outras camadas, além das disputas territoriais decorrentes das guerras e outros conflitos, tinham como ponto importante de detonação a luta pelo pão de cada dia. Em Roma e outras cidades do Império, o protesto contra as autoridades, os ricos, os responsáveis públicos pelo abastecimento sempre foi elemento presente nas crises políticas.
Antes do cristianismo se estabelecer como uma religião oficial do Império Romano e a Igreja católica se transformar em Instituição poderosa, as seitas cristãs ou os agrupamentos do chamado cristianismo primitivo foram se desenvolvendo como um movimento na base da sociedade romana, tendo com um dos motes principais a luta contra a fome, através de uma rede organizada de fraternidade entre os oprimidos.
Este fenômeno chamou atenção de expoentes do marxismo no século XIX, a começar por Friedrich Engels, posteriormente Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo. No livro “A Origem do cristianismo”, Kautsky analisa as transformações do cristianismo, abordando os fatores econômicos da estrutura da sociedade e a luta entre as classes. Do ponto de vista do proselitismo religioso, a ideologia do cristianismo primitivo refletia o conteúdo da sua composição de classe.
“Era um vigoroso comunismo, embora confuso, que prevalecia na comunidade em seus primórdios, uma condenação de toda propriedade privada, um impulso por uma ordem social nova e melhor. (…)A esperança da revolução, da vinda do messias, da sublevação social, saturou as primeiras organizações cristãs entre os judeus” (KAUTSKY, K. A origem do cristianismo, p 451).
Posteriormente, a Igreja Católica se estabelece como uma instituição do próprio Império decadente, e permanece após a sua queda, assumindo uma perspectiva conservadora.
O trato da fome (e, portanto, da caridade) pela Igreja ao longo do tempo passou a ser algo relacionado com o controle social, e não mais como parte da auto-organização proletária dos primeiros tempos.
Por sua vez, na Alemanha, nas revoltas camponesas no fim da Idade Média, e na Revolução Inglesa de 1640, a questão religiosa era a linguagem dos conflitos de classe. As revoltas camponesas tiveram como estopim a luta pela terra, o aumento do custo de vida apresentou-se muitas vezes como estopim imediato para as mobilizações. No Livro “As guerras camponesas na Alemanha”, Engels analisa a estrutura de classe, as transformações econômicas, as lutas políticas, bem como o papel da ideologia religiosa na Alemanha na ocasião das guerras camponesas durante a Reforma Protestante.
Luta de classes e revoltas no capitalismo
Nas crises cada vez mais frequentes do capitalismo, a Luta contra o custo de vida impulsionou movimentos nacionalistas, movimentos camponeses e toda sorte de movimentos espontâneos, mas também movimentos revolucionários da classe operária.
O clássico livro de Engels “A Formação da Classe trabalhadora Inglesa” apresenta com maestria a questão da constituição dos operários a partir da Revolução Industrial, mostrando como as condições de vida estavam marcadas pela pauperização social.
O historiador inglês Edward Palmer Thompson ressaltou, no contexto específico da Inglaterra do século XVIII, a importância dos levantes e motins devido a situação de escassez de alimentos e fome generalizada.
Nas revoluções burguesas, como na grande Revolução Francesa (1789), o custo de vida e o aumento da fome nas cidades e no campo impulsionaram as mobilizações do povo contra a aristocracia e a monarquia.
Na Revolução Russa, a palavra de ordem dos bolcheviques “Paz, Pão e Terra” catalisou as reivindicações populares. A luta contra a mortandade da I Guerra Mundial expressou na defesa do fim da guerra, na ação pela Paz, e serviu para mobilizar em especial os soldados. Por sua vez, a palavra Terra impulsionava a revolta dos camponeses contra os grandes latifundiários.
A defesa do “Pão” na agitação bolchevique em 1917 indicava a importância da mobilização revolucionária contra o aumento do custo de vida e a fome que afligiam os setores mais pauperizados da população. Demostrando uma grande perspicácia, Lênin, principal dirigente Bolchevique, colocava a questão do poder político “Nenhum apoio ao governo provisório” e “todo poder ao soviets”, ao mesmo tempo em que a campanha “Paz, Pão e Terra” tinha uma importância crucial não somente na defesa de um programa de luta, mas através de palavras simples expressavam as principais reivindicações populares, mobilizando concretamente soldados, camponeses, operários e o povo explorado tanto nas cidades como no imenso campo russo.
Esse exemplo da Revolução Russa demostra como um partido revolucionário precisa se ligar às massas populares através de reivindicações populares, ao mesmo tempo apontando uma perspectiva política.
No Brasil atual, a luta contra a carestia, a fome, o desemprego é crucial como parte da luta contra o governo golpista que tem aumentado a destruição dos direitos sociais e econômicos do povo. Na próxima semana abordaremos o papel da luta contra a carestia nas mobilizações populares contra a ditadura militar no Brasil na segunda metade da década de 1970.