No último dia 27 de julho, este Diário publicou matéria chamada “A esquerda liberal”, polemizando com artigo assinado por Jéssica Milaré, no site Esquerda Online, da corrente Resistência do Psol, intitulado “Diferenças e semelhanças entre nazismo e stalinismo”. Na ocasião, criticamos a ideia central do texto como sendo uma adaptação à direita liberal, que concebe o problema do poder político como uma espécie de luta ideológica e não como um resultado da luta de classes e dos interesses das classes.
A autora publicou um segundo texto no último dia 4 de agosto para, segundo ela, “deixar o debate mais nítido, desfazer algumas confusões (não todas, são muitas), apresentar fatos e argumentos e reafirmar que o regime stalinista foi uma ditadura sanguinária. [grifo nosso]”. Em “O stalinismo foi ditadura, sim! Contestando os negacionistas (Parte 1)”, Milaré afirma que seu texto não se dirige aos “stalinistas fanáticos” mas aos “marxistas das várias matizes que negam o caráter ditatorial do regime stalinista”, os quais ela chama de “negacionistas”.
Para reafirmar a “ditadura sanguinária” de Stalin, a autora acaba caindo na mesma concepção liberal do primeiro texto. Mais precisamente, ela aprofunda tal concepção ao tentar provar que o stalinismo é uma ditadura. Para isso, ela levanta algumas denúncias de atrocidades cometidas a mando de Stalin. Fatos que, sendo ou não uma realidade – e ao que parece, são – não mudam a concepção marxista sobre o caráter do Estado e do poder político.
Se Stalin mandou matar um de seus braços direitos, Nikolai Yezhov, da maneira descrita no texto, o que isso muda sobre a caracterização correta do Estado Soviético? Sobre esse caso, a autora diz que sente “um embrulho no estômago.” Até podemos compreender e concordar com a náusea da autora, mas a política e a ciência não são afeitas a moralismos.
As atrocidades de Stalin devem ser analisadas, conforme explicou o próprio Leon Trótski, do ponto de vista dos interesses sociais que Stalin representava naquele momento. Trótski inclusive defendia o Estado operário soviético contra o imperialismo mesmo tendo mais consciência do que qualquer outro sobre as atrocidades desse regime. A crítica ferrenha de Leon Trótski ao stalinismo não o impedia de ter essa posição diante do mínimo ataque do imperialismo.
A crítica de Trótski, como dissemos no texto anterior, não tinha em sua essência uma denúncia abstrata e idealista da “ditadura de Stalin”, mas o fato de que a burocracia eliminou fisicamente toda a geração dos revolucionários russos que participaram ativamente na revolução, ou seja, a política de Stalin era uma política contrarrevolucionária, que estava a serviço não dos interesses da classe operária e do desenvolvimento da Revolução, mas favorecia a ascensão de uma burocracia privilegiada que se colocava frontalmente, em seus interesses materiais, em oposição aos trabalhadores.
Ao expor seu “embrulho no estômago”, Milaré está abdicando de qualquer concepção marxista da história e da política. E sua política liberal fica ainda mais explícita quando procura explicar o conceito de ditadura do proletariado. Evoca a grande revolucionária polonesa, Rosa Luxemburgo, justamente naquilo em que esteve totalmente equivocada em seu debate com Lênin e Trótski. Rosa, em seu livro “A Revolução Russa” afirma que: “No lugar dos organismos representativos saídos de eleições populares gerais, Lenin e Trotski puseram os sovietes como a única representação verdadeira das massas operárias” (..) “trata-se de uma ditadura, é verdade, não a ditadura do proletariado, mas a ditadura de um punhado de políticos, isto é, uma ditadura no sentido puramente burguês”.
Rosa Luxemburgo via a Revolução de Outubro como uma abstração política. Ignorava as necessidades e principalmente as dificuldades que os bolcheviques enfrentaram nos primeiros meses da tomada do poder. Uma concepção idealista que não considerava o Partido e os Sovietes como a representação mais acabada da classe operária e que portanto, a ditadura do proletariado somente poderia passar por esses organismos. Eram eles a representação concreta e prática da ditadura do proletariado. Mesmo confusa nesse ponto, Rosa Luxemburgo, pela própria citação escolhida pela nossa autora do Esquerda Online, não era contra a ditadura, entendia o Estado como uma ditadura de uma classe sobre a outra.
Milaré diz que “ditadura do proletariado e democracia do proletariado” são dois lados da mesma moeda. Ao tentar explicar, ela revela que é contra a ditadura, mesmo a do proletariado. Sua concepção do Estado é burguesa, liberal, não leva em conta os problemas candentes do poder do Estado e os interesses de classes envolvidos. Por isso, seu ataque ao stalinismo acaba colocando-o no mesmo balaio do que o marxismo, do que Lênin e Trótski.





