Na derrubada do governo Dilma Rousseff e no posterior desenvolvimento do golpe de Estado brasileiro, que teve como acontecimento chave a prisão do ex- presidente Lula, o judiciário cumpriu um papel relevante com instrumento institucional na engrenagem golpista.
No livro Crise e golpe do professor e jurista Alysson Leandro Mascaro a “sobredeterminação jurídica” na crise brasileira é sublinhada :
“A proeminência do direito, no caso da crise brasileira atual, se levanta como a possibilidade de rearticulação do arranjo institucional numa crise de acumulação que não consegue encontrar vazão nem se resolver no sistema político até então estruturado. Para isso, o direito será utilizado a partir tanto de seus usos típicos de exploração e dominação quanto de uma inflexão de seus papeis, corroborando novas articulações institucionais que respondam à crise.” ( Mascaro, crise e golpe, 2018).
Ao examinar de forma ampla uma das chamadas vias de “ legalização” ou melhor de legitimação do golpe de Estado em 2016, Alysson Mascaro observa que o Direito é um elemento representativo de um processo de justificação, ao mesmo tempo, cumpre um papel na operacionalização do próprio golpe.
“ o direito sobredetermina a crise tomando prominência em sua gestação, em que seu direcionamento e em sua manutenção. A crise passa operar também mediante o aparato e os aparelhos de poder eminentemente jurídicos.”
Ao indicar o direito como uma sobredeterminação, Mascaro reafirma que o que os fatores decisivos para o golpe foram as determinações econômicas e seus desdobramentos políticos, “as bases materiais que são determinantes.”,
No plano mais amplo, os processos políticos impactam no estabelecimento dos contornos institucionais. Dessa forma, “funcionalidades e envergaduras das métricas especificas” o judiciário expressa como as instituições são reconfiguradas para dar conta de uma nova “ conformação com a forma política estatal” diante “das fragilidades políticas e econômicas do capitalismo”.
O direito não é uma “garantia” da democracia em abstrato, mas relaciona-se com a necessidade de reprodução do próprio sistema capitalista. Do ponto de vista mais teórico, Mascaro abordar a questão do direito não somente a partir da crise brasileira, mas a partir de uma concepção do Direito como a expressão das relações econômicas e politicas do capitalismo. O autor explicita sua filiação aos concepções do jurista marxista dos anos 1920, Evguiéni Pachukanis, autor do livro Teoria Geral do direito e marxismo.
“ Puchukanis atrela o direito à mercadoria, uma vez que a forma social de uma é reflexo da outra. Com isso, pela primeira vez alcança a materialidade do direito como forma de sociabilidade necessária do capitalismo. (…) ” ( MASCARO, idem, p.109).
Neste sentido, para Puchukanis o direito como forma social jurídica está diretamente vinculada com a forma social capitalista, e portanto com as características do modo de produção. Dessa forma, Mascaro critica visões de “ alternativas emancipadoras” a partir do direito, uma vez que o mesmo não pode conduzir á superação da sociabilidade capitalista, citando a crítica aos ilusões jurídicas expostas por Engels e Kautsky, em Socialismo Jurídico.
Através dessa abordagem, ainda que podemos pontuar críticas, permite com que Mascaro possa se distanciar das concepções democratizantes vigentes na esquerda brasileira, o que já é um aspecto positivo do livro.
A grosso modo, boa parte da intelectualidade brasileira, apresentou uma adesão entusiástica a noção de “ consolidação democrática “ no Brasil, apresentando senões, mas no substancial, aderindo a ideia de que a “ transição democrática”, tendo como marco a Constituinte de 1988, teria instalado a “ democracia”, e que os fundamentos do direito seriam uma garantia do aspecto da “ consolidação da democracia” evidenciam a vigência de uma profunda ilusão com o papel das instituições democráticas.
Depois de explicitar a sua critica à ideologia jurídica, e sua adesão a um “ marxismo renovado” (bastante eclético, por sinal), Alysson Mascaro retoma o fio da meada sobre a crise brasileira. Dessa forma, adverte como os agentes jurídicos e policiais passam a desempenhar um papel relevante na montagem do golpe. Indica que não foi somente um processo interno no judiciário nacional, mas articula-se com interesses do capital, inclusive o transnacional. O autor chama atenção que boa parte dos agentes do direito foram preparados e treinados nos EUA. “ aumentam intercâmbios entre agentes jurídicos e policiais de variados países, centralizados nos Estados Unidos.” Algo semelhante com a formação dos golpistas militares na época da guerra fria.
Neste ponto, Mascaro também salienta que existe uma alteração na formação e mesmo na formatação no corpo judiciário brasileiro
“Neste sentido, há uma divergência em relação à antiga formação jurídica brasileira. No passado, o estamento jurídico, de corte profundamente bacharelesco, cultura geral hermética e que se afirmava a partir de sua diferença para com o restante da cultura da sociedade. O latim, os brocardos, as vestimentas e os protocolos da interação social tornavam os sucessores de Rui Barbosa um grupo distinto daqueles da politica e da economia burguesa. (…).
No presente, há uma noção de unidade corporativa do mundo jurídico para o recebimento de favores e privilégios e de manutenção de seu poder decisório inconteste e, mesmo, uma maior exposição e uma maior apropriação do poder condutor dos destinos sociais, em contrapartida, perde-se a noção de estamento intelectual ou comportamental. “o direito tanto veste toga para manter privilégios estamentais quanto terno e gravata para se alinhar ao capital, como agente do capital. (…)( MASCARO, idem, p.57).
Esse judiciário articulado com outros atores do golpe, como a imprensa e os representantes políticos e de classe das diversas frações do capital, procura estabelecer uma validade formal e material ao golpe, através do processo de impeachment , “validade de seus atos, perquisições e julgamentos”.
Por fim, Mascaro aponta que é preciso compreender “ o golpe brasileiro de 2016 como golpe de classe, numa movimentação de suas frações, e, para tanto, enraíza-lo ainda mais na reprodução dos capitais mundial e nacional.”